...e quando você pensa que já viu tudo... aparece esse filme.
Um tapa na cara. Prepare seu estômago para vê-lo. Logo no início, uma cena antológica.
É o mal que se basta. Não há espaço para a bondade, a beleza, o afeto. No meio de tanta sujeira material e existencial, uma luz tênue bruxoleia: o amor de Dottie pelo amiguinho da escola. Infelizmente, era apenas uma recordação.
É o Texas eviscerado; o sonho americano virado pelo avesso.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
sábado, 22 de fevereiro de 2014
36 anos na lida, fiel apenas a um senhor.
Caro Bené,
Tu não tens que provar mais nada a ninguém, pega o sopão e vai descansar. Um abraço.
++++++
Tu não tens que provar mais nada a ninguém, pega o sopão e vai descansar. Um abraço.
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Um colega parabenizou-me com essas palavras no Linkedin pelos 36 anos de companhia. Agradeço. Concordo com ele. Não tenho que provar mais nada a ninguém. Sou um homem reto, de caráter, sem preço (espero continuar até o fim dos meus dias...) que prezou acima de tudo a ética nas relações profissionais e afetivas. É meu único patrimônio. Despido de qualidades, restou-me a ética. Não vim ao mundo para ser feliz, vim para ser ético. Nisso considero-me plenamente realizado. Tenho, entretanto, que provar muito prá mim mesmo. Porisso vou ficar. Continuo na área mas agora como pesquisador. Vou me reinventar depois dos 60.
Shakespeare e a corrupção
Não se sabe ao certo se Shakespeare é
autor de “Eduardo III”. A peça aborda
um tema perene: governantes governam
governos e, no entanto, quase
nunca sabem se governar. O que fazem os políticos
corruptos, todos sabemos. Mudam os tempos
e diferem os costumes. Eles abusam da
imunidade e da impunidade, praticam o mais
descarado nepotismo, usam os serviços públicos
como se fossem direitos privados.
O rei Eduardo III (1312-1377) criou a Ordem
da Jarreteira, a mais antiga e importante comenda
britânica, concedida aos que se destacam
pela lealdade à Coroa. Jarreteira é uma liga
azul de prender meias de mulher. O criador da
Ordem de tão curioso nome casou-se aos 14
anos com a belga Phillippa, que lhe deu 13 filhos.
Mais tarde, apaixonou-se por Joan, condessa
de Salisbury, que o ignorou e insistiu em
manter-se fiel a seu segundo marido, malgrado
o assédio real.
Durante um banquete em Calais, em comemoração
à posse inglesa da cidade francesa, o rei tirou
a condessa para dançar, sob os olhares perplexos
da rainha Phillippa e da corte. Súbito, uma
das meias de Joan se desatou e desceu ao pé. O
rei, sem o menor constrangimento, apanhou a liga
azul e a amarrou debaixo de seu joelho esquerdo.
Frente ao murmúrio provocado por tão ousado
gesto, Eduardo III pronunciou a frase que se
tornaria o lema da Ordem da Jarreteira: Honi soit
quit mal y pense (Maldito seja quem pensar mal).
Vivesse em nossa época, Shakespeare teria à
sua disposição vasto material, menos nobre, é
verdade, descoroado, pois não convém comparar
Eduardo III com senadores que viajam às
nossas custas para cuidar da vaidade capilar e
nomeiam corruptos notórios como assessores.
Feita de barro e sopro, a natureza humana é
sempre a mesma. Sendo o sopro de natureza divina,
invisível e volátil, como todos os dons que
dependem de nossa liberdade de acolhê-los e
cultivá-los, fica o barro como o atoleiro no qual
metemos as mãos, os pés e a alma. Amolecido
pelo dinheiro da corrupção, torna-se ainda
mais maleável. O corrompido não passa de argila
fresca em mãos do corruptor.
A prova mais contundente de que Shakespeare
enfiou sua colher de pau na cozinha de Eduardo
III reside no fato de ele repetir literalmente,
em seu Soneto 94, a frase os lírios que apodrecem
fedem muito mais que ervas daninhas
(Lilies that fester smell far worse than weeds).
Aliás, em matéria de plágio, nossa senatorial
maracutaia não fica atrás. A vida extrapola a ficção.
Mas, quando a repulsa paralisa a plateia, a
impunidade campeia. De cima do palco eles se
abrigam na escuridão, protegidos pelo manto
da imunidade, posando de vítimas ao relampejar
dos holofotes da mídia. Enquanto aqui no
andar de baixo somos envenenados pelo cheiro
da podridão.
Frei Betto
O Globo, 09.02.2014
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
Linchadores e Bandidos
Contardo Calligaris
Querem saber se acho que o Brasil melhorou desde os anos 1980.
Se estou de bom humor, digo que sim: falo da época em que o telefone era
imóvel para investimento, a inflação transformava qualquer crédito em
usura, carro usado custava mais que carro novo e comprar um notebook
significava "conversar" com um comissário da Varig, para que ele
trouxesse o aparelho de Miami.
Se estou de mau humor, digo que não: falo de nossos estudantes que se
perdem no ranking internacional, da mediocridade de grande parte da
classe política, da vagarosidade dos serviços básicos e, enfim, da
produtividade pífia, da ganância e da corrupção, que tornam absurdamente
caro tudo o que é nacional.
Seja qual for o humor, lembro que, nas últimas décadas, diminuiu
substancialmente a percentagem dos excluídos, ou seja, diminuiu aquela
miséria que situa alguém num barco à parte, na deriva e sem relação com o
rumo comum.
Mas logo paro: será que, ao longo dessas décadas, constituiu-se um rumo
comum? Diminuiu a exclusão, disse, mas será que passou a existir uma
comunidade na qual seja possível e valha a pena sentir-se incluído? Será
que existe, no Brasil, o sentimento de uma comunidade de destino,
passado e futuro? Será que o Brasil, como nação, existe dentro de nós
que aqui vivemos?
Na noite de 31/1, no Rio de Janeiro, um garoto de rua foi encontrado nu,
preso a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço. Ele foi
seviciado por uma turma de motoqueiros vigilantes. O garoto, nas
fotografias, parece um filhote esgarrado; mas cuidado com a ternura: se
você o encontrasse livre, com os amigos dele, no escuro do aterro do
Flamengo, você procuraria ansiosamente as luzes de uma viatura. Por
outro lado, provavelmente, o bando que o prendeu lhe inspiraria um medo
análogo, se não pior.
Enfim, alguns se indignaram pela ação dos vigilantes. Outros felicitaram
os vigilantes, conclamando que está na hora de os cidadãos de bem
reagirem.
Na Folha (pág. 3, 11 de fevereiro), o debate culminou com os artigos de
Rachel Sheherazade, âncora do "SBT Brasil", e Ivan Valente, deputado
federal pelo PSOL: Sheherazade cansada do "coitadismo" de esquerda, que
protege os criminosos, e Valente achando que a violência dos vigilantes
só gera "mais violência".
Não é preciso brigar, visto que linchadores e bandidos são filhos de um
mesmo problema endêmico: aqui, a coisa pública não vingou --o Estado,
para nós, é uma pompa, mais ou menos ridícula, ele não é nada dentro da
gente. Se não tem coisa pública, por que eu não viveria matando quem não
me entrega seu relógio? Se não tem coisa pública, por que eu não
lincharia quem me assalta?
Linchadores e bandidos vingam porque não vivemos num país comum (com
mesmos valores, história e antepassados para nos inspirarem). Habitamos
uma zona de tiro livre, ou seja, uma área de combate em que ninguém é
"dos nossos", mas tudo o que mexe é um alvo permitido.
Ao longo do debate, foi citada, mais de uma vez, a receita de Nova York
nos anos 90, "tolerância zero", como se fosse uma medida de repressão.
Não era. Nunca foi. "Tolerância zero" era uma estratégia para fazer
existir o espaço público. Sua moral: se você não quer assaltos no
parque, cuide das flores. Não deixe que mijem nos canteiros, e o número
dos assassinatos diminuirá. Diminuiu.
Não é que os criminosos tenham medo de flores. É que as flores
manifestam que a comunidade existe no coração e nas mentes de todos (e
ela vai se defender).
Por que não haveria em nós o sentimento de uma comunidade de destino? Há
razões antigas, sobre as quais se debruçam os intérpretes do Brasil.
Mas há também razões imediatas. Clóvis Rossi, na Folha de 13/2: "alguém
precisa aparecer com um projeto de país, em vez de projetos de poder".
Em 30 anos, desde que cheguei ao Brasil, parece que só assisti aos conflitos de projetos de poder.
Mais duas notas. 1) O sentimento de uma comunidade de destino, que é o
que faz uma nação, não tem nada a ver com o nacionalismo. Ao contrário, o
nacionalismo surge para compensar a falta desse sentimento. Portanto,
torcer no Mundial ou, como Policarpo Quaresma, falar tupi e tocar
maracá, tudo isso é uma grande perda de tempo.
2) Será que, nessa zona de tiro livre, só tem espaço para linchadores e
bandidos? Não, claro, há todos os outros, que são (somos) os "salve-se
quem puder" --com diferenças: alguns podem fugir para Miami, outros só
podem baixar os olhos e caminhar rente aos muros.
Folha, 20.02.2014
domingo, 16 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
domingo, 9 de fevereiro de 2014
O que se pode saber de um homem?
Somos aquilo que fazemos com o que querem fazer de nós.
(Jean Paul Sartre)
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoahttp://www.citador.pt/poemas/lisbon-revisited-1926-alvaro-de-camposbrbheteronimo-de-fernando-pessoa
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