Pensando nas misteriosas influências que nos fazem ser o que
somos, da loteria do DNA à escolha dos caminhos, dos afetos e dos empregos,
passando pelos vizinhos, namoradas, família, heróis da infância e da vida
adulta, azares e acasos, olho para trás tentando localizar alguns pontos de
impacto –os instantes realmente marcantes que parecem mudar o nosso rumo. É uma
tarefa impossível, porque somos parte interessada demais. Mas, afinal, somos
mesmo feitos de tarefas impossíveis, e aí é que está a graça.
A primeira sensação é a de que fui feito de leituras, o que
é obviamente uma mentira, se fosse para dar um peso moral a este primeiro erro
de avaliação. A leitura é uma duplicação de um confuso mundo pré-existente, o
qual, quando se lê e se escreve, tenta-se retificar e ratificar –chegamos à
palavra escrita já cheios de vontades e escolhas, mais como um engenheiro curioso
numa quadra de entulhos do que como uma vítima ingênua na escuridão.
O momento histórico é especialmente importante, a barulhada
em torno, e isso independe de nós. E a idade pesa –gostamos tanto de ordenação
que nos imaginamos formatados em décadas, pessoas de proveta, um ser diferente
por decanato. Não se reage do mesmo modo em tempos diferentes (embora muitas
pessoas se jactem de ser sempre as mesmas, como quem faz praça da própria
estátua). E há, ainda, a insídia da emoção, que nos cega e justifica.
"É cousa demais", como se dizia antigamente.
Baixando a bola, fiquemos nas leituras. Como um bom sessentão, tive formação
iluminista, o otimismo pós-Segunda Guerra. Tudo pode ser racionalizado, a
inteligência é o valor supremo, a clareza e a nitidez são entidades éticas e o
mundo só anda para a frente.
Uma mistura de Sherlock Holmes, o herói de Conan Doyle –os
sinais do crime estão à vista, basta cabeça fria para revelá-los–, e de Júlio
Verne, com a boa crença na ciência e a desconfiança do mal, que existe e deve
ser combatido; e os finais são felizes. Cresci na atmosfera laica de um mundo
que, enquanto arrastava seu passado sinistro e glorioso, tentava inventar um
novo futuro, o que realmente aconteceu, na fratura geral dos anos 1960.
Cria daquele tempo, exatamente ali me reconheço. Como diz a
célebre citação de William Faulkner (1897-1962), o passado não está morto;
aliás, nem mesmo é passado. Como um louco circular, retorno sempre àquele ponto
cego, atrás de uma chave-mestra.
Porque havia duas, incompatíveis: "Cem Anos de
Solidão", a "Ilíada" da América Latina inventada por Gabriel
García Márquez (1927-2014), nos dizia que a história era um ser vivo, fatal e
inexorável como os deuses gregos, e que homens, árvores, nuvens e borboletas
giram sob leis poéticas e transcendentes inacessíveis ao gesto humano, e é
nesta entrega ao tempo que reside a surda beleza que nos cabe.
A outra chave surgiu inteira deslocada e contraditória, e no
entanto me pegou, no instante exato, as variáveis todas conjuminadas num belo e
irresistível eclipse total: adolescente, anos 1960, contra os grilhões da
família e a hipocrisia da sociedade, e sob influência de um guru barbudo, W.
Rio Apa (1925-2016), que, num projeto mais emocional que intelectual, passou
boa parte da vida tentando conciliar Nietzsche com Rousseau (o que, pensando
bem, é um retrato do presente), mais a sombra do teatro como o caminho possível
da libertação pessoal –e eis que me caem nas mãos as peças do norueguês Henrik
Ibsen (1828-1906).
Ibsen é um monstro que inventou a dramaturgia moderna. Dos
confins da Noruega, criou uma obra que empalideceu automaticamente todo o
teatro que se fazia no século 19. Para mim, uma peça foi especial: "Um
Inimigo do Povo". Resumindo: um homem descobre que as águas da cidade estão
poluídas, mas a cidade depende comercialmente delas para sobreviver.
Na luta por denunciar o crime, acaba ficando contra todos.
Ele resiste, e uma frase me bateu na cabeça: o homem mais forte é o homem mais
só. Naquele momento, isso era tudo que eu queria ouvir. Até hoje gosto de
acreditar que ela me livrou, com um toque quase aristocrático, do rebanho. O
que é engraçado para alguém que, como eu, vê numa roda de amigos bebendo
cerveja uma das faces mais concretas da felicidade.
Bem que o texto poderia ser meu. Sinto-me representado por ele, além de tantas vivências comuns, afinal somos baby-boomers. O diabo é que não escrevo tão bem como Cristóvão Tezza. Tomei a liberdade de transcrevê-lo integralmente, pois há muito de mim naquilo que escreveu.