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Luiz Felipe Pondé não deixa barato na sua crônica de ontem na Folha - Espiritualidade Contemporânea:
A espiritualidade está na moda. Muita gente diz que tem
espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é legal, não é
materialista, mas nada tem a ver com as
barbaridades cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista
light. Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$
100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do trabalho
físico.
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Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação
entre espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma
busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas do
cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.
O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina
que nos fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem
necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições
religiosas à mão.
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A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da
condição humana e da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não
apenas do deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto
paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de “errado” em
sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e por aí vai).
As grandes tradições espirituais sempre falaram de
sofrimentos reais e não de modas culturais, como no caso que descrevi acima
(day temple, Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais
avassaladores é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto,
repousar é justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço.
A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um
recurso a ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas
variadas de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana
“ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente” punida
com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma nova forma de
doença mental.
Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de
espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem como um
discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia (24/7, como
dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em direção ao sucesso
eterno.
Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar
de forma desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo
espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma melhor
gestão do karma.
Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas
contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser
infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma desconfiança
profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma empreitada para a
prosperidade.
Marcio Tavares D'Amaral em Fé, religião, radicalização escrito para O Globo em 06.08.2016 é mais didático:
Espiritualidade, fé e religião são palavras que às vezes confundimos. É habitual ouvir-se alguém afirmar que tem a fé cristã, ou muçulmana. Seria mais correto dizer: Tenho fé em Deus ( Yahweh, o Pai, Allah) e professo a religião cristã, judaica ou muçulmana. A fé é uma relação profunda com o transcendente. Pode ser desordenada ou doce. Mas é sempre uma relação com o incomensuravelmente maior do que nós. A religião põe ordem na fé. Estabelece rituais, práticas e normas. É a lei. Tem a função de regular. Não permitir que as manifestações de fé em estado puro encham o mundo da diversidade subversiva da graça de Deus - E ainda há a espiritualidade. Essa não exige fé, e pode prescindir da religião.
A espiritualidade tem a natureza de uma sabedoria. Pode também pedir rituais. Mas não adora. Não há um deus na outra ponta. Não exige fé. Pode ser encarada como, formalmente, uma religião. O budismo é assim. É uma sabedoria de viver, baseada, paradoxalmente, na ausência de sentido da vida. E na busca de um desapego, de iluminações. As religiões do Livro, ao contrário. Afinal, livros servem para definir sentidos. Lê-se para aprender a vida como Deus a quer. É em torno dos Livros que as religiões monoteístas se organizam. E a fé se fortalece pela prática dos ritos, ou se perde neles e fica seca. Às vezes há fé na reza de um rosário. Às vezes só há contas. Como pode acontecer com o masbaha que os muçulmanos desfiam enquanto conversam ou trabalham. Ou com a kipá judaica: humildade perante Yahweh ou apenas um chapéu. Espiritualidade, fé e religião podem, no limite, se excluir.
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