... e agora Ausências com Piazzola e seu bandoneón.
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Prá terminar bem o mês.
... e agora Ausências com Piazzola e seu bandoneón.
Admirável mundo novo
Heterofatalismo, desafiliação performativa da heterosexualidade, alexitimia masculina normativa... devem soar como grego para você. Prá mim também. Tomei contato com eles lendo um artigo de J.P. Coutinho para a Folha que se reporta a outro artigo do NYT Magazine - viralizou na Internet! - com um inglês bem complicado, recheado de phrasal verbs e gírias, que me deu um trabalho danado para entender. Confesso, entretanto, que valeu a pena. Conheci um pouco do que se passa no imaginário de uma novaiorquina de educação superior a respeito da relação homem-mulher nos dias atuais, recheado com o suporte teórico de acadêmicas up-to-date na matéria como uma ph.D em filosofia com especialização em filosofia feminista, uma sexual scholar, uma psicoanalista feminista e por aí vai...
Os neologismos típicos desta Novilíngua emanada dos acadêmicos dos departamentos de humanidades referem-se basicamente às demandas das mulheres não atendidas pelos homens em um relacionamento afetivo e o consequente desapontamento com o gênero masculino definido como heteropessimismo pela sexual scholar Ana Seresin. Para dar ares de tragédia ao drama, esse desencanto vem acompanhado do onipresente aguilhão do desejo - privately, jokes aside, I am quite susceptible to penis - escreve a autora, justificando o título do artigo : The problem with wanting men. É o heterofatalismo, também tomado de empréstimo da Seresin.
As desventuras são postas à mesa de almoço de um restaurante vegano em downtown Manhattan por uma terapeuta, uma historiadora, a autora do texto e sua amiga. Em termos de cenário e protagonistas, mais hipster impossível. Enquanto almoçam, desfilam histórias de seus relacionamentos e de amigas, com os homens e seu desapontamento com o comportamento deles. As queixas são inúmeras; uma delas refere-se à incapacidade masculina de comunicar-se em uma relação afetiva, que outra acadêmica definiu como alexitimia masculina normativa. Uau!
A rotina de frustração de expectativas com os parceiros amorosos, leva-as a uma crescente desafiliação performativa da heterosexualidade, outro neologismo da acadêmica Seresin. Ela sugere uma saída: A opção queer*, um relacionamento mais fluido e que foge dos estereótipos do padrão heterosexual tradicional que privilegia a dualidade e a inescapável dominação de uma das partes. Para a amiga da autora, em comentário pós-almoço, o relacionamento tradicional entre homem e mulher está morto. É preciso dar um basta na sofrência que ele traz.
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De cara, o artigo sugeriu-me a perspectiva da mulher como a medida de todas as coisas e o homem como uma massa a ser modelada de acordo com suas demandas, abordagem típica destes tempos de batalhas identitárias em que o feminismo radicalizado deste século desempenha papel importante. Qualquer relação afetiva exige lidar com a alteridade, que obviamente será anulada quando um dos parceiros se torna sua medida. A opção queer, tida como mais fluida, é uma das soluções sugeridas, mas a alteridade também lá estará.
Um adjetivo - fútil - que uma das protagonistas empregou para qualificar a insatisfação feminina diante do comportamento masculino, escrutinizado muitas vezes com lupa, chamou minha atenção. Tendo a concordar com ela. Será que uma mulher que vive na América profunda, é assaltada pelas mesmas angústias, vê problemas em tantos detalhes... ou considerará a abordagem também futilidade de uma mulher com situação econômica confortável de um grande centro urbano?
É curioso que mulheres tão cosmopolitas e supostamente independentes continuem a repetir atitutes old-fashioned como cobrar um compromisso dos homens em uma relação.
A atitude evasiva do homem, alvo de tantos queixumes não estaria indicando que ele não está investindo nessa relação como algo de duradouro, e que cair fora seria a melhor decisão? Se o comportamento é recorrente, não seria devido às escolhas equivocadas dos parceiros? Nem todos os homens esquivam-se de compromissos afetivos. Haveria tantos casamentos - afinal um compromisso - caso fosse esse comportamento recorrente?
Estou curioso para saber o que o futuro nos reserva. Relações mais fluidas entre homem e mulher? Huuum... talvez funcionem em Manhattan.
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* Queer refere-se a fugir da binariedade (macho/fêmea, masculino/feminino, heterosexual/homosexual) desafiando as ligações entre sexo, gênero e sexualidade. Ser queer significa ser ao mesmo tempo, macho, fêmea ou nenhum deles, ser masculino, feminino, nenhum deles ou uma mistura dos três, adotar qualquer sexualidade e mudá-la a depender das circunstâncias, negar que elas tenham significado por sí. (cap. IV) - (a tradução é minha)
Pluckrose, H., Lindsay, J., Cynical Theories, Pichstone Publishing, 2020.
Volto a esse livro em um próximo post.
terça-feira, 29 de julho de 2025
Longe desse insensato mundo....
Essa música é do século XII. Ouvi-la é como estar no céu.
...e muita gente boa por aí, diz que a Idade Média foi a idade das trevas.
sábado, 26 de julho de 2025
Terra arrasada.
Primeiro puseram edifícios/construções abaixo e fizeram de Gaza uma ruina. Agora querem completar o serviço, matando de fome os que não foram abatidos a bala ou pelos bombardeios. É uma infâmia, apesar do Hamas ser infame também. É de doer ver aquelas crianças desnutridas, corpos esqueléticos, rostos macilentos, com aqueles olhos enormes e fundos, à semelhança dos judeus nos campos de concentração nazistas. Dados do Ministério de Saúde de Gaza de junho de acordo com a agência Reuters, controlados pelo Hamas, contabilizavam 55000 palestinos mortos desde o início do conflito, mais da metade de mulheres e crianças. Gaza tem cerca de 2 milhões de habitantes, o que faz do conflito - provavelmente - ser o mais sangrento do século.
Lembrei de Mila 18, um livro de Leon Uris, sobre o ghetto de Varsóvia que lí na minha juventude e que me fez chorar com as atrocidades lá descritas. Lembrei-me do livro, pois o que os judeus hoje fazem em Gaza, de acordo com as agências internacionais de notícias, assemelha-se muito ao que os nazistas fizeram com eles no ghetto.
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O bicho-homem que foi aquinhoado com a razão pelo long and widing road da evolução ou por obra divina definitivamente não aprende a usá-la. Se o fato de sermos racionais e inteligentes levou-nos a produzir um Sócrates, Aristóteles e Platão na filosofia; Beethoven, Mozart e Bach na música: Newton, Einstein na ciência, Michelângelo, Da Vinci, Rembrandt e a turma da escola flamenga nas artes plásticas, também nos levou a ser açougueiros uns dos outros a exemplo do genocídio perpetrado pelos nazistas contra os judeus. E agora, por incrivel que pareça, os judeus querem repetir a dose com o povo palestino. Será que não aprenderam nada com a história?
terça-feira, 15 de julho de 2025
Le 14 juillet
Coincidência ou não terminei de ler ontem 1789 - o surgimento da Revolução Francesa de Georges Lefèbvre, Paz e Terra, 3a edição, 2019. De acordo com o título restringe-se ao seu surgimento e a seu ano inicial. A partida é dada pela convocação dos Estados Gerais pelo Rei em maio - sem ela não teria havido a Revolução de acordo com o autor. Prossegue com a revolução parisiense e a tomada da Bastilha (julho), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (agosto); o atestado de óbito do Antigo Regime. O último grande acontecimento do ano são as jornadas de outubro com o povo obrigando Luis XVI a se transferir de Versalhes para as Tulherias em Paris, acompanhado pela Assembléia. As jornadas foram a pá de cal no Antigo Regime pois trouxeram o Rei e a Assembléia para perto do povo, tornando-os reféns da Revolução.
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Diferentemente das Revoluções Holandesa no final do século XVI, da Inglesa que a precedeu em um século e da Americana, sua contemporânea, a Revolução Francesa foi violenta, especialmente nos anos que se seguiram a 1789. As outras tiveram um caráter reformista, a Inglesa ocorreu em clima tranquilo, foi burguesa e conservadora; a Francesa foi burguesa e democrática sob um ponto de vista de esquerda (Jaurès). Na Francesa, cerca de cem mil cabeças rolaram aos golpes da guilhotina, na fase da República da Virtude (eufemismo para Terror) de Robespierre, ele próprio uma vítima.
A Francesa foi a mais radical, de um ponto de vista marxista para quem a transição do feudalismo para o capitalismo moderno se fez através de duas vias: a revolucionária, pela destruição total do antigo sistema econômico e social ou pela via do compromisso que salvaguardava os antigos meios de produção na nova sociedade capitalista, de acordo com o posfácio da obra assinado por Albert Soboul. Na realidade não foi bem assim, pois a igualdade de direitos e não de posses, bem como o direito à propriedade estão lá na Declaração dos Direitos do Homem, para desespero da esquerda mais radical, muito simpática à República da Virtude de Robespierre e seus jacobinos, inspirada em Rousseau.
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Outra maneira de encarar o caráter revolucionário do movimento francês é o enfoque dado por Talleyrand :
O ideal da Revolução Francesa definido desde antes não era uma mera mudança no sistema social francês, mas nada menos do que uma regeneração de toda a raça humana... Eles os revolucionários tinham uma fé fanática em sua vocação - a de transformar o sistema social, raízes e ramos, e de regenerar toda a raça humana.
Pois é... regenerar a raça humana. Muito revolucionário, muito utópico, mas deu ruim ou como escreveu Hannah Arendt : - Terminou em desastre.
Voltarei ao assunto numa próxima postagem, para comentar a diferença entre os Iluminismos que se desenvolveram na Inglaterra, França e Estados Unidos, assunto de outro livro que estou lendo: Os Caminhos para a Modernidade de Gertrude Himmelfarb, historiadora americana conservadora. A frase de Talleyrand foi extraida de lá.
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Para Lefebvre, um historiador de esquerda, a Revolução foi o somatório de quatro revoluções: aristocratica, burguesa, popular e camponesa, talvez inspirado em Chateaubriand que afirmou que os patrícios começaram a Revolução, os plebeus a terminaram. Os capitulos iniciais são dedicados à descrição das ordens em que os 23 milhões de franceses estavam divididos à época: o clero composto por cerca de 100 mil sacerdotes, monges e freiras; os nobres com cerca de 400 mil, incluiam aqueles de berço, de espada e de toga (tribunais judiciais parisienses e das províncias) e finalmente o Terceiro Estado com o restante da população. Era composto pela burguesia (financistas, banqueiros, negociantes-fabricantes, comerciantes, manufatureiros, médicos, os homens da lei (juizes, procuradores, advogados) e os artesãos com suas corporações) e pelos camponeses, que compunham 3/4 da população, a maioria composta por homens livres. Estes só entraram na Revolução depois do 14 de julho. Até essa data, ela havia sido aristocrática e burguesa.
Ler nos capítulos iniciais, os privilégios desfrutados pelo clero e pela nobreza da época e as obrigações impostas ao Terceiro Estado em termos de impostos, transpôs-me à república de privilégios que é o Brasil atual, produto do patrimonialismo herdado da monarquia portuguesa que sobrevive até hoje.
E aí entra um terceiro livro que também estou lendo: O País dos Privilégios - Volume 1 : Os novos e velhos donos do poder, de Bruno Carazza, Companhia das Letras, 2024. Nele desfilam os atores do nosso Primeiro Estado - denominação minha - composta pelos donos do poder do setor público: a turma da toga (magistrados), do parquet (Ministério Público), a elite dos poderes Executivo e Legislativo, os advogados públicos, os fiscais da Receita Federal, a turma da farda, os políticos, os cartórios. Quanto aos atores do Segundo Estado, encarnados pelos donos do dinheiro e que compõem a classe empresarial o autor reservou o volume II ainda não publicado.
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Os franceses fizeram sua revolução no final do século XVIII, nós continuamos empacados num estágio pré-revolucionário em pleno século XXI. Inacreditável? Infelizmente não. De acordo com dados da Oxfam de 2023, 63% da riqueza do país está na mão de 1% da população; os 50% mais pobres detém apenas 2% dela. 1% da população mais rica ganha 40 vezes mais que os 40% mais pobres de acordo com dados da PNAD contínua do IBGE de 2023. Para chegarmos ao índice de Gini da França de hoje, precisaríamos de 43 anos caso nosso índice evoluísse ao rítmo do período de 2001/2014 conforme dados do IBGE e do Banco Mundial publicados no Poder360.
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Sei não, mas somos um projeto de nação que insiste em dar errado.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
O outro lado da cidade (maravilhosa?) (II)
Pois voltei a Madureira. O desfalque - também fui contemplado! - em meu salário do INSS obrigou-me a retornar à capital do subúrbio carioca de acordo com matéria do suplemento sobre Tijuca e Zona Norte de O Globo do dia 11. Razões históricas determinaram essa distinção para o bairro. A região desde os tempos da Colônia era um entreposto comercial uma vez que o Largo do Campinho era um cruzamento de caminhos indígenas que ligavam Jacarepaguá, Irajá, Pavuna e Méier. O surgimento do Mercadão em 1914 para abastecer a cidade, foi uma consequência natural dessa posição estratégica, aliada ainda à proximidade com estrada de ferro.
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A viagem desta vez foi menos tensa do que a primeira. Depois das indigestas tratativas com a entidade financeira, dirigí-me ao famoso Mercadão, distante 1000m a pé. No caminho, uma passarela sobre uma linha férrea, acho que desativada. Toda ela coalhada de ambulantes assim como os seus acessos. Ao longo da linha férrea muito lixo que parece não ser recolhido regularmente. A passarela é travessia para os fortes; advertiram-me que o risco de um assalto era grande; a atmosfera de fato sugeria, mas passei incólume, apesar de ser alvo das atenções com minha indisfarçável cara de gringo. Alí o Brasil mestiço aparece sem jaça; pretos e pardos dominam a paisagem que sugere um abandono completo do Estado, um daqueles lugares esquecidos por Deus.
Cruzado o Rubicão - ops, a passarela! - andei mais 300m também em calçadas coalhadas por barracas de ambulantes até alcançar o Mercadão. É um prédio de dois andares que abriga cerca de 600 lojas de acordo com o artigo; muitas delas vendem artigos religiosos,particularmente de umbanda; outras tantas lembram os velhos armazéns de secos e molhados vendendo grãos, farinhas, azeites; numerosas também são as que vendem utilidades domésticas e quinquilharias com preços acessíveis; havia uma que vendia animais vivos: galinhas e até um cabrito estavam por lá. A área com verduras e frutas, não visitei.
O Mercadão é a cara do subúrbio; é assim que o carioca denomina os bairros da Zona Norte e Oeste que se desenvolveram ao longo das linhas férreas da Leopoldina e Central do Brasil, um mundo bem diferente daquele da Zona Sul, tanto em termos de lojas quanto de público. Deveria ser ponto de visitação aos turistas que por aqui aportam, e, mesmo para os moradores da Zona Sul que se referem a seus habitantes com uma dose de preconceito. A imensa maioria nunca pisou aquele chão. Não nasci aqui, mas suspeito que o suburbano seja o mais carioca dos cariocas.
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A propósito, lembrei do título de um filme brasileiro - que não assisti - dos tempos de juventude: Copacabana me Engana . Depois de Madureira e do Mercadão posso dizer:
- Zona Sul me engana!
sábado, 28 de junho de 2025
O outro lado da cidade (maravilhosa?)
Ontem o boy aqui, botou os pés na Zona Norte. Fui a Madureira, tentar remediar um golpe aplicado por instituição bancária - a única agência na cidade está lá - no meu salário de aposentado.
Preocupado com minha segurança, coloquei roupas simples e discretas, tentando disfarçar o máximo possível minha condição de forasteiro potencializada pela minha cara de gringo. E lá fui eu de metrô para a Central. Peguei o trem para Japeri; os carros tinham ares de abandono externo, mas eram muito bem cuidados internamente. Pouca gente - eram 8:30h pois o destino ficava no contrafluxo. Bem diferente dos trens superlotados mostrados nos jornais televisivos. Ao longo do trajeto, muitas casas simples e na sua maioria, pouco cuidadas, geralmente de dois andares; atentei para o fato de haver pichação em muitas delas. Treze estações depois de uma viagem sem percalços, desembarco em Madureira.
Para sair da estação de trem e alcançar a rua, enfrenta-se duas longas escadas e um corredor atopetado de barracas de ambulantes. Nada de escadas rolantes. Ví idosos subindo e descendo por elas penosamente. Nas ruas de calçadas estreitas, muita gente, vestida simplesmente; a maioria pardos e pretos.
A agência bancária estava próxima, e com uma razoável fila para o atendimento, composta por muitos idosos - possivelmente aposentados - de condição muito simples. As histórias que ouvi, dos que estavam próximos, deixava transparecer a condição precária das suas vidas, tanto físicas quanto monetárias. Vinham de outros bairros, um deles com problemas de coluna, tinha dificuldade para ficar de pé. Todos com histórias de dívidas e empréstimos, contraídos sei lá com que cláusulas, pela instituição bancária que, se tinha aplicado um golpe em alguém da minha condição, imagina o que poderia ter aprontado pra cima desse pessoal. Senti a grandeza do meu privilégio, num país multifacetado como o nosso, vendo aqueles rostos vincados pela dureza da vida, potencializada por suas condições financeiras. Ouvi poucas queixas. Por incrível que pareça, observei um tom de resignação e até mesmo de aceitação da sua condição.
Já no interior da agência, aguardava minha vez sentado numa das muitas cadeiras que acomodavam aquele resignado exército Brancaleone. Volta e meia aparecia um funcionário sorridente e com uma gentileza afetada, oferecendo um cafezinho bem quente. Parecia deboche, e era! Não faltou o toque evangélico. Lá pelas tantas alguém ergue uma Bíblia e entoa um - Glória a Deus!
Fui atendido depois de uma hora - tempo razoável dentro das circunstâncias! - e voltei para a minha condição privilegiada de morador da Zona Sul prometendo retornar para uma visita ao Mercadão de Madureira, um velho sonho. Deram-me uma dicas de como chegar lá. Dá para ir caminhando a partir da estação de trem e isso me deu ânimo para uma nova visita ao outro lado da cidade. Talvez mais raiz daquele em que habito.