domingo, 31 de maio de 2020
Biscoito finíssimo!
A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves
pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os
tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se
engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o
anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se
filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
(Tido e havido como um dos maiores poemas da lingua brasileira)
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Falou e disse!
Sempre despudorado, Lobão tascou hoje em entrevista ao UOL:
Lula é um ladrão, Bolsonaro, um facínora.
sábado, 23 de maio de 2020
O Brasil como ele é
Pertinente análise sobre sermos o que somos como nação faz Oscar Vilhena em seu artigo de hoje na Folha. Destaco um parágrafo onde ele é extremamente feliz ao colocar os termos para explicar a simbiose entre ricos e remediados que faz o Brasil ser o que é:
A natureza extrativista de setores que têm dominado a vida política e econômica brasileira, assim como a omissão e conivência dos estratos remediados de nossa sociedade não permitiram estabelecer uma sociedade menos desigual, disfuncional e violenta, pavimentando a ascensão ao centro do poder nacional dessa “necropolítica” que há muito imperava nas periferias brasileiras e que hoje zomba, dá de ombros e incentiva a morte de tantos brasileiros, como João Pedro e Valnir da Silva. E daí?
quarta-feira, 20 de maio de 2020
#FORA BOLSONARO!
Com toda a força que meus pulmões ainda não atingidos pelo coronavirus permitem gritar!
Afinal de que esgoto, brotou essa estranha forma de vida que no dia em que o país ultrapassa o número de 1000 mortes diárias sai-se com essa em uma live, usando uma camisa da seleção brasileira:
Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma Tubaína. Viu como sou educado?
Antes encontrou-se com dirigentes do Flamengo e Vasco - ninguém usava máscara - , vestindo uma camisa do Flamengo, para propor o reinício das atividades esportivas no país.
*********
Éramos uma nau de insensatos vagando sem norte e sem porto para atracar. Agora, com essa estranha forma de vida eleita democraticamente para a Presidência da República, rumamos céleres para o abismo.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
O caráter nacional
Mais de 73.000 militares receberam indevidamente o auxílio emergencial destinados aos trabalhadores informais afetados pela pandemia.
*********
Meu irmão que mora em uma cidade do sul do país, testemunhou pessoas chegando de carro ao banco para retirar seu auxílio emergencial.
*********
Um vendedor de uma loja de automóveis em cidade próxima a Brumadinho, saiu-se com essa ao ser questionado a respeito do aumento das vendas de carros depois das pessoas afetadas pelo rompimento da barragem terem recebido uma bem nutrida indenização da Vale:
- Quem não tinha nenhum, agora tem dois.
...as usual!
Leio por aí que em Belém o serviço de empregada foi considerado essencial. Prá quem? Prá ela que se não aparecer, é demitida ou para o patroa que sem seus serviços, fica sem chão? Temo que para as duas. Em ambos os casos, revela o quanto nos repetimos desde a colônia. Mudam os atores, o cenário, mas os problemas permanecem. Continuamos os mesmos, como já cantou o velho bardo Belchior.
domingo, 10 de maio de 2020
Desiguais até não mais poder.
Torço o nariz prá quem fica batendo na tecla da desigualdade prá explicar as mazelas do país. Entendo que ela sempre existirá - não com as dimensões da brasileira, é claro! - e que o problema maior é a pobreza, opinião de um Prêmio Nobel de Economia, do qual não lembro o nome. Entretanto, os dados que sairam na semana passada da PNAD contínua do IBGE de 2019 sacudiram-me no berço esplêndido de classe média média/alta em que vivo. Constato que faço parte dos míseros 1% mais abonados do país. Mais acachapante ainda é saber que 50% da população tem uma renda média per capita de até R$ 1260,00 e que a renda média dessa turma é de R$ 850,00.
O preço desse abismo de renda já está se fazendo sentir no número de mortos pela pandemia no país. Muito provavelmente ocuparemos o segundo lugar nesse triste pódio da morte, atrás apenas dos Estados Unidos.
Assinar:
Postagens (Atom)