Coincidência ou não terminei de ler ontem 1789 - o surgimento da Revolução Francesa de Georges Lefèbvre, Paz e Terra, 3a edição, 2019. De acordo com o título restringe-se ao seu surgimento e a seu ano inicial. A partida é dada pela convocação dos Estados Gerais pelo Rei em maio - sem ela não teria havido a Revolução de acordo com o autor. Prossegue com a revolução parisiense e a tomada da Bastilha (julho), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (agosto); o atestado de óbito do Antigo Regime. O último grande acontecimento do ano são as jornadas de outubro com o povo obrigando Luis XVI a se transferir de Versalhes para as Tulherias em Paris, acompanhado pela Assembléia. As jornadas foram a pá de cal no Antigo Regime pois trouxeram o Rei e a Assembléia para perto do povo, tornando-os reféns da Revolução.
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Diferentemente das Revoluções Holandesa no final do século XVI, da Inglesa que a precedeu em um século e da Americana, sua contemporânea, a Revolução Francesa foi violenta, especialmente nos anos que se seguiram a 1789. As outras tiveram um caráter reformista, a Inglesa ocorreu em clima tranquilo, foi burguesa e conservadora; a Francesa foi burguesa e democrática sob um ponto de vista de esquerda (Jaurès). Na Francesa, cerca de cem mil cabeças rolaram aos golpes da guilhotina, na fase da República da Virtude (eufemismo para Terror) de Robespierre, ele próprio uma vítima.
A Francesa foi a mais radical, de um ponto de vista marxista para quem a transição do feudalismo para o capitalismo moderno se fez através de duas vias: a revolucionária, pela destruição total do antigo sistema econômico e social ou pela via do compromisso que salvaguardava os antigos meios de produção na nova sociedade capitalista, de acordo com o posfácio da obra assinado por Albert Soboul. Na realidade não foi bem assim, pois a igualdade de direitos e não de posses, bem como o direito à propriedade estão lá na Declaração dos Direitos do Homem, para desespero da esquerda mais radical, muito simpática à República da Virtude de Robespierre e seus jacobinos, inspirada em Rousseau.
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Outra maneira de encarar o caráter revolucionário do movimento francês é o enfoque dado por Talleyrand :
O ideal da Revolução Francesa definido desde antes não era uma mera mudança no sistema social francês, mas nada menos do que uma regeneração de toda a raça humana... Eles os revolucionários tinham uma fé fanática em sua vocação - a de transformar o sistema social, raízes e ramos, e de regenerar toda a raça humana.
Pois é... regenerar a raça humana. Muito revolucionário, muito utópico, mas deu ruim ou como escreveu Hannah Arendt : - Terminou em desastre.
Voltarei ao assunto numa próxima postagem, para comentar a diferença entre os Iluminismos que se desenvolveram na Inglaterra, França e Estados Unidos, assunto de outro livro que estou lendo: Os Caminhos para a Modernidade de Gertrude Himmelfarb, historiadora americana conservadora. A frase de Talleyrand foi extraida de lá.
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Para Lefebvre, um historiador de esquerda, a Revolução foi o somatório de quatro revoluções: aristocratica, burguesa, popular e camponesa, talvez inspirado em Chateaubriand que afirmou que os patrícios começaram a Revolução, os plebeus a terminaram. Os capitulos iniciais são dedicados à descrição das ordens em que os 23 milhões de franceses estavam divididos à época: o clero composto por cerca de 100 mil sacerdotes, monges e freiras; os nobres com cerca de 400 mil, incluiam aqueles de berço, de espada e de toga (tribunais judiciais parisienses e das províncias) e finalmente o Terceiro Estado com o restante da população. Era composto pela burguesia (financistas, banqueiros, negociantes-fabricantes, comerciantes, manufatureiros, médicos, os homens da lei (juizes, procuradores, advogados) e os artesãos com suas corporações) e pelos camponeses, que compunham 3/4 da população, a maioria composta por homens livres. Estes só entraram na Revolução depois do 14 de julho. Até essa data, ela havia sido aristocrática e burguesa.
Ler nos capítulos iniciais, os privilégios desfrutados pelo clero e pela nobreza da época e as obrigações impostas ao Terceiro Estado em termos de impostos, transpôs-me à república de privilégios que é o Brasil atual, produto do patrimonialismo herdado da monarquia portuguesa que sobrevive até hoje.
E aí entra um terceiro livro que também estou lendo: O País dos Privilégios - Volume 1 : Os novos e velhos donos do poder, de Bruno Carazza, Companhia das Letras, 2024. Nele desfilam os atores do nosso Primeiro Estado - denominação minha - composta pelos donos do poder do setor público: a turma da toga (magistrados), do parquet (Ministério Público), a elite dos poderes Executivo e Legislativo, os advogados públicos, os fiscais da Receita Federal, a turma da farda, os políticos, os cartórios. Quanto aos atores do Segundo Estado, encarnados pelos donos do dinheiro e que compõem a classe empresarial o autor reservou o volume II ainda não publicado.
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Os franceses fizeram sua revolução no final do século XVIII, nós continuamos empacados num estágio pré-revolucionário em pleno século XXI. Inacreditável? Infelizmente não. De acordo com dados da Oxfam de 2023, 63% da riqueza do país está na mão de 1% da população; os 50% mais pobres detém apenas 2% dela. 1% da população mais rica ganha 40 vezes mais que os 40% mais pobres de acordo com dados da PNAD contínua do IBGE de 2023. Para chegarmos ao índice de Gini da França de hoje, precisaríamos de 43 anos caso nosso índice evoluísse ao rítmo do período de 2001/2014 conforme dados do IBGE e do Banco Mundial publicados no Poder360.
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Sei não, mas somos um projeto de nação que insiste em dar errado.