quarta-feira, 25 de julho de 2012

Por outro lado...

 Há lugar para a coragem da individualidade humana. Entretanto, o final feliz, pelo menos nessa história, é ficção.

 João Pereira Coutinho

 A dignidade dos feios

 ERNEST BORGNINE morreu há três semanas e nem uma palavra minha nesta Folha. Que injustiça: para mim e para Borgnine, um dos meus atores de eleição
. .....
Mas, para a posteridade, ficará a sua composição em "Marty", obra de Delbert Mann que valeu o Oscar de melhor ator em 1955. Nada mais justo: "Marty" é um tratado precioso sobre a dignidade dos feios e a coragem da individualidade humana.
Para começar, o mundo é dos belos. Negar para quê? Faz parte da retórica bem pensante dizer que a beleza não é fundamental. Há quem fale até em "beleza interior" para compensar o estrago e atribuir uma espécie de indenização ética ao sujeito.
Não vale a pena mascarar a verdade ou confundir as verdades: a "beleza interior" pode ser relevante, e até mais relevante, do que a superficialidade da carne.
 Mas é para essa superficialidade que se olha primeiro -ou que se rejeita primeiro. A ideia pode não ser agradável para quem pensa que todas as desvantagens da vida são produto de uma "construção social" defeituosa.
 Infelizmente, a realidade não se ajusta a fantasias. A natureza é um cassino. E nem tudo obedece aos caprichos igualitários do nosso tempo: alguns foram bafejados pelo escopo da beleza -e outros, simplesmente, não.
Marty não foi: ele é gordo e feio. E nem sequer tem fortuna pessoal para cumprir o demolidor aforismo de Nelson Rodrigues sobre o assunto ("Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro").
Aos 34 anos, Marty é um solitário. E todos lhe perguntam, ao balcão do açougue onde trabalha: "Quando casas, Marty?". Pior: todos cobram esse feito, como se existisse um prazer perverso na humilhação perversa dos feios.
Marty escuta e sofre: em silêncio. Os irmãos arrumaram a vida: têm filhos, mulheres, famílias. Casas nos subúrbios.
Ele, Marty, continua a morar com a mãe. Que também lhe pergunta: "Quando casas, Marty?". De vez em quando, ele sai com os amigos aos sábados à noite.
Para ver o mercado e testar a sua baixa cotação na praça. Mas Marty está cansado de procurar companhia. Porque está cansado da rejeição.
 "Marty" começa por ser uma pequena pérola sobre esse grande tabu: a rejeição dos feios, a angústia que existe nessa rejeição, e o cansaço de quem tentou uma vez, e outra, e outra ainda, para receber apenas desprezo ou repulsa de volta.
Poucos filmes captaram de forma tão digna e pungente a tristeza da feiura.
 Mas "Marty" vai mais longe e mostra como a vida adulta é sobretudo definida pelas escolhas que fazemos: escolhas nossas, radicalmente nossas, mas tantas vezes ensombradas pela opinião dos outros.
Isso sucede quando Marty conhece finalmente um par. Clara (Betsy Blair, no filme) é uma "outsider" como ele -feições modestas, igual desesperança no afeto alheio. Mas é doce, atenta e presente, alguém com quem ele fala sem parar na primeira noite.
Marty encontrou alguém. Marty sabe que encontrou alguém. Mas o exército dos solitários inicia as suas operações: a mãe viúva que teme o abandono do filho, os amigos celibatários que invejam a sorte de um membro do clube, todos eles começam a encontrar defeitos na escolha de Marty. E a dar palpites ou sugestões para o desviar da sua rota.
Marty fica confuso, medroso, melindrado. Mas é quando se encontra novamente só que a epifania acontece: a vida só lhe pertence a ele, não ao coro grego que pretende determinar o seu destino.

Moral da história?

 Enganam-se os que pensam que a afirmação da individualidade é sempre um ato heroico e prometeico, como nas óperas de Wagner ou nos textos de Nietzsche. Grande parte da nossa individualidade joga-se todos os dias nas pequenas decisões anônimas que tomamos. Joga-se, no fundo, nesses momentos em que pesamos a nossa covardia e a nossa coragem.

E decidimos depois seguir em frente.

Folha, 24.07.2012

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