Apaixonante esse tema. Também tenho essa visão trágica da vida, apesar de ter me educado e ser fortemente influenciado pelo projeto moral cristão. A vida e a natureza nos ultrapassam. Na realidade elas dão de goleada ! Nossa hybris muitas vezes tenta enfrentá-las mas o castigo sempre vem.
É duro viver!
Luiz Felipe Pondé
Nêmesis
Nêmesis era a deusa grega da vingança. Ela tinha especial prazer em
torturar heróis que caíam em "hybris" (desmedida) e pensavam ser outra
coisa que mortais sob o domínio dos deuses e das moiras, senhoras
divinas quase cegas que teciam o destino de todos.
Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos
gregos, apesar da grandiosa beleza do sistema bíblico. Não que eu ache
"legal" o politeísmo, mas porque eu acho que a visão de mundo dos
trágicos é a melhor. A piedade trágica, aquela despertada pela empatia
entre nós e os infelizes heróis do teatro grego, é que levou Nelson
Rodrigues a dizer que devíamos assistir ao teatro de joelhos.
A acusação feita aos trágicos é que eles negam o sentido último da
vida, porque os deuses gregos eram uns loucos apaixonados e sem projeto
moral para o mundo (o destino é sempre cego). Isso é verdade. O Deus de
Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto
moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é. E isso nos
acalma.
A tragédia marcou a cultura de forma profunda, os exemplos são
inúmeros: Shakespeare, Gracian, Schopenhauer, Nietzsche, Camus, Cioran,
Nelson Rodrigues, Philip Roth.
É desse último que quero falar hoje. Especificamente de seu livro
mais recente, "Nêmesis", a história do jovem professor de educação
física Bucky Cantor atravessando o grande surto de pólio nos EUA no
verão de 1944.
Os heróis de Roth sempre são esmagados entre a vida pessoal, os
vínculos afetivos e ideias, e grandes processos históricos ou
"cósmicos" que têm um efeito aleatório na vida deles -e sempre
destrutivo.
Como exemplos históricos, vemos a Guerra da Coreia, o macarthismo
versus comunismo nos anos 1950 nos EUA, a contracultura, a canalhice do
politicamente correto nas universidades americanas. Como exemplo
cósmico, o envelhecimento, a perda das funções sexuais ou de memória,
as pragas (como a pólio em "Nêmesis").
No caso desse romance, a praga da pólio ocupa o lugar de pragas
atávicas que sempre significaram para nossos ancestrais a fúria dos
deuses. E é contra Deus que Cantor se revoltará.
Mas Roth é um grande escritor, e a revolta do jovem Cantor será
teologicamente sofisticada, e não mero ateísmo militante, porque o
ateísmo militante é sempre infantil.
O cruzamento entre as intenções pessoais e o destino, histórico ou
cósmico, dá o efeito de esmagamento e negação de projeto moral, na
medida em que os heróis de Roth não conseguem discernir qualquer
sentido que não seja a cegueira terrível do acaso ou o "terror da
contingência", tal como diz o narrador de "Nêmesis".
A expressão "terror da contingência" é comum nos textos do
historiador das religiões Mircea Eliade para descrever o que nos
moveria ao desejo religioso de um sentido maior. Tememos o acaso porque
ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é
cego.
Para Cantor, Deus é um "demiurgo". Essa expressão era comum em
alguns textos heréticos do início do cristianismo (textos gnósticos) e
significava que Deus é mal. E se Deus for mal, não há qualquer
esperança.
Mas o narrador do romance pensa diferente. Sua hipótese sobre a vida
e as decisões que Cantor tomará é mais psicanalítica (ele sofreria de
uma "neurose de responsabilidade"), mas nem por isso menos teológica.
Para o narrador, Cantor é excessivo em julgar a si mesmo responsável
pela desgraça que destrói seus alunos. E por isso sofrerá, porque
nenhum homem pode se julgar senhor do destino, já que esse não nos
pertence.
Como a deusa em questão é a da vingança, Nêmesis, a desmedida de
Cantor em se julgar responsável pelo destino de seus alunos será vista
de outra forma: Cantor se julga um justo e um dedicado professor e, por
isso, pagará um preço alto pela autoimagem de homem reto. Aí está sua
desmedida.
Cantor é o Jó de Roth (o judeu Levov, protagonista de "Pastoral
Americana", é outro Jó de Roth): Cantor e Jó se julgam justos. Mas
Cantor é um Jó que não encontra, ao final, a piedade de Deus, mas a
vingança de uma deusa cega à misericórdia.
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