Cumpridos 74 anos de peregrinação por esta vida - haverá outras? - ouvir canto gregoriano no matinal Áurea Música da Radio MEC FM, transporta-me para uma capela gótica de um monastério da Idade Média - vem-me a mente, aqueles ambientes recriados pelo filme O Nome da Rosa de J.J. Annaud. Faz-me lembrar dos anos de adolescência/juventude que perambulei por vários conventos franciscanos lá no Sul e que me marcaram profundamente. Sei não, mas meu estilo cada vez mais recluso de vida levam-me pensar que ainda não abandonei aquela vida e que continuo ainda um pouco frade.
segunda-feira, 13 de outubro de 2025
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Lá se foi mais um...
e a sensação mais forte de que o fim da jornada se aproxima.
A temida idade do com...dor deu as caras. Foi aos 70, que os achaques - termo de velho! - começaram a se manifestar, além dos esquecimentos - especialmente de fatos próximos - terem se tornado mais frequentes. Paradoxalmente... fatos do passado remoto assomam o plano consciente amiúde. Os 70 colocaram-me na velhice. Como não há como contrariar os fados, continuarei submetendo-me estoicamente à caprichosa tessitura das moiras.
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- Projetos? Não há mais.
Deixei prá trás o mundo do petróleo e tudo a ele relacionado, apesar de ter recebido convites para lá continuar. A ele sou grato por ter me proporcionado estabilidade financeira, mas a paisagem humana que ele oferecia não permite que eu tenha saudades.
Quero dispor do tempo só para mim. Há um Caminho de Santiago para percorrer a pé, e um Brasil do Oiapoque ao Chuí para desbravar de carro . Preciso fazê-los o mais breve possível. Os 80 se aproximam. Depois, tudo passa a ser computado como lucro.
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- Certezas? Nenhuma, além daquela de o fim estar próximo e de que - esta sim, suprema -...
- Existir, dói.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Insuspeito para falar
Para arrematar, é preciso arrolar a arrogância blasée que faz da democracia um lero-lero afetado e esnobe. Os “democratas” e a “esquerda” não souberam ouvir divergências, acolher descontentamentos e dialogar. Não souberam educar, porque não souberam aprender. Parecem crer que suas presunções pernósticas são o mais refinado sinônimo da verdade. Imaginando erguer a cabeça, apenas empinaram o nariz, o que abriu flancos para a demagogia bruta da extrema direita.
Eugênio Bucci - Onde é que a esquerda errou? - Estadão, 02.10.2025
Vai ao encontro do que penso. A presunção e a arrogância intelectual - celebrizada na expressão basket of deplorables de Hillary Clinton referindo-se aos apoiadores de Trump -, a superioridade moral, fruto da certeza de ter descoberto o Santo Graal, são os pecados que ornam boa parte dos integrantes da nossa esquerda. Há ainda o primado da ideologia sobre o julgamento ético - ele é o nosso canalha! - , mas aí é prá outro papo.
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
La Cardinale.
Povoou meu imaginário, até pelo menos os 40 anos. Bela, talentosa e sensual - como lí por aí - sem nunca ter se despido diante das câmaras. Para happy few!
Em O Leopardo, com Alain Delon formou certamente um dos mais belos casais da história do cinema...e dirigida por Luchino Visconti! Querem mais? O filme recebeu a Palma de Ouro em Cannes em 1963. E prá terminar... é considerado um clássico na história do cinema. Chiquerésima!
La Cardinale devia habitar também o imaginário de Caetano Veloso, que antes de se tornar celebridade nacional como cantor, brincava de crítico de cinema em jornais baianos e a cantou em Alegria, Alegria, no histórico festival de 1968:
O sol se reparte em crimesEspaçonaves, guerrilhasem Cardinales bonitas......bomba e Brigitte Bardot
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Mais uma a se ir. Estou cada vez mais só.
O bruxo/mago de Bangu
O chamavam de bruxo do sons, porque os extraia de qualquer objeto que lhe caisse às mãos. Prefiro chamá-lo de bruxo/mago - estrábico, albino, com aquele cabelão desgrenhado! - de Bangu, um bairro perdido da Zona Oeste, no fundão do município do Rio de Janeiro. Em sua própria casa no Jabour, funcionou (não sei se ainda está em atividade...) a Escola Jabour de música, totalmente fora dos padrões de ensino da matéria. Foi seu quartel-general e de lá não saiu até sua morte ocorrida no dia 13 deste mês. Ficou longe do badalado circuito da Zona Sul, mesmo considerado um músico popular de primeiríssima grandeza urbi et orbi. No festival de Montreux de 1969 recebeu uma ovação destinada a poucos que por lá se apresentaram. Miles Davis disse de Hermeto:
- O músico mais impressionante do mundo.
Nunca recebeu a atenção que realmente merecia por aqui. Menos mal que no Rio deram seu nome para uma Areninha Cultural na Praça Primeiro de Maio em Bangu. Entretanto, era respeitadíssimo no exterior tendo sido agraciado com o título de Doutor honoris causa pela prestigiosa Juilliard School de Nova Iorque.
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Apesar desse alagoano de Olho D'Água ser uma usina sonora, segue um forró arretado de ortodoxo desse músico autodidata que fez o mundo sem nunca ter abandonado Bangu:
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Outro grande personagem do meu mundo que se vai.
domingo, 14 de setembro de 2025
Ferraris, Lamborguinis, Rolex, imóveis em condomínios de luxo...
Traduzem o brazilian way of life de traficantes/milicianos/golpistas/influencers a julgar pelas apreensões da Polícia Federal nas suas operações contra o crime organizado, ou não, da nossa Pindorama em tempos recentes. Até réplica de carro de Fórmula 1 apreenderam!
Não sei qual o sentimento do crème de la crème do nosso andar de cima a respeito, pois a posse de um ou mais desses brinquedinhos até bem pouco tempo balizava a diferença deles para nós simples mortais. Pois nos novos tempos, a ralé moral/existencial da nossa sociedade também resolveu adotá-los como símbolos de status.
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Deve ser duro acordar pela manhã e ver um séquito de carros da PF estacionados ao lado da sua casa, ou na portaria do seu prédio de apartamentos. Afinal, seu vizinho não passava de um traficante/miliciano/influencer/golpista de renome na praça. Madames devem ficar em polvorosa.
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Divirto-me a beça. Ranço dos velhos tempos em que acreditava na máxima baudelariana: épater la burgeoisie.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Penso, logo é isso.
Vou retomar um post feito no passado em que apresentava variações/trocadilhos para o Cogito cartesiano, depois de ter lido um artigo da colunista que aborda temas de midia para a UOL Rosana Hermann. Neste artigo, entretanto, ela resolveu pensar um pouco sobre o momento em que vivemos e lá encontrei a pérola do título. Muito pertinente.
Nestes tempos em que as grandes narrativas soçobraram, e que a internet e redes sociais deram palanque para todos, o debate público tornou-se uma grande Babel, expressão utilizada por Rosana. Descartes e seu cogito - pilar de uma grande narrativa que fundou a época moderna - deram lugar para o Penso, logo é isso, - não deixa de ser um trocadilho! - retrato de uma atualidade estilhaçada.
Humberto Eco, pegou pesado, ao dizer que a - A internet deu voz a uma legião de imbecis. De fato, ela democratizou o debate público, porém, trouxe para a ribalta o nível, antes restrito ao espaço dos botequins. Fez do papo de boteco, uma atividade online.
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- Serei eu mais um na legião?
domingo, 31 de agosto de 2025
sábado, 30 de agosto de 2025
...e a América curva-se para a Latinoamérica (II)
Curiosamente dias após eu ter postado a matéria sobre o fato da América estar copiando as mazelas que condenam ao atraso a América Latina a Economist publica uma reportagem que parece ir na contramão do que escreví. A matéria de capa afirma que o Brasil está dando aulas de maturidade democrática aos Estados Unidos no caso da apuração e julgamento da tentativa de golpe do 8 de janeiro, comparando-o com o da invasão do Capitólio feita pelos seguidores de Trump um ano antes.
Considerando pontualmente o evento, tendo a concordar com a afirmação, a América estaria aprendendo com a Latinoamérica, mas suspeito que o(s) autor(es) da matéria não devem conhecer suficientemente os detalhes de funcionamento de nossa democracia. Para tal, é necessário viver em Pindorama por algum tempo. Somos muito bons no atacado, temos legislações avançadíssimas, por exemplo, em meio-ambiente, no combate à violência doméstica, à inclusão de deficientes, mas tropeçamos no varejo, na aplicação da legislação no dia-a-dia. A independência entre os poderes, existe no papel; na vida como ela é, funciona precariamente.
O Judiciário é atravessado pela política e a atravessa, só para citar um dos poderes. Dentro do próprio processo jurídico instaurado contra os participantes da desastrada operação, boa parte das condenações já impostas à infantaria (arraia miúda) que promoveu a invasão/baderna nos prédios públicos, foi de uma exagerada dosimetria, fato defendido por muitos juristas.
quinta-feira, 28 de agosto de 2025
Quem diria...
Greta Garbo não acabou no Irajá?
E não é que...hoje a Polícia Federal acaba de bater na Faria Lima?
(Os fatos nada tem a ver um com o outro, a não ser pelo inusitado, embora com o sentido inverso. A sofisticação de Holywood indo ao encontro do subúrbio carioca na peça teatral que fez muito sucesso no Rio na década de 70, e agora com o submundo do crime infiltrando-se no centro financeiro do país.)
O tempo passa... o inusitado continua sempre batendo à nossa porta. O crime organizado já não lava o dinheiro lá fora. A operação é feita aqui mesmo, no coração financeiro do país.
Estagnados no que interessa, evoluimos em matéria de crime. Já podemos nos ombrear com a Itália. Temos a nossa máfia. Atende pelo nome de PCC.
...e a América curva-se para a Latinoamérica
Não era um sonho de todo latinoamericano de esquerda? Lamento, mas as razões não são nada boas. Não foi porque evoluimos virtuosamente nas práticas políticas que tornam nossa democracia tão precária, mas porque a America involuiu adotando vícios que caracterizam nosso atraso. O agente laranja que ora ocupa a Presidência americana não se cansa de nos copiar.
Ontem diversos diretores da CDC (Centers for Desease Control and Prevention), órgão do governo americano pediram demissão alegando que a saúde pública americana vem sendo aparelhada pelo atual governo. Tudo a ver com a contínua interferência/aparelhamento dos nossos governos nas agências reguladoras federais, estaduais e municipais criadas exatamente para evitar interferências políticas; são órgãos de estado e não de governo.
No dia anterior, o temível agente laranja demitiu uma diretora do FED, fato inédito na história da instituição. É apenas mais um capítulo da sua indisfarçável tentativa de controlar o órgão, porisso vive às turras com seu presidente, que também deseja demitir. Qualquer sujeito razoavelmente esclarecido, sabe o quanto nosso atual presidente importunou o ex-presidente do BC, querendo interferir nas decisões da política de juros. Na Argentina, em 2010, a hermana Cristina Kirchner quando presidia o país, demitiu o presidente do BC local.
A cerca de um mês, o déspota nada esclarecido, demitiu a líder de estatísticas do BLS (Bureau of Labor Statistics), acusando-a de manipular dados a respeito de dados de emprego com fins políticos; os números por ela apresentados ficaram bem abaixo das expectativas. Em Latinoamerica, Cristina Kirchner, em 2007 quando presidia a Argentina, ordenou uma intervenção no Indec (o IBGE deles); 700 funcionários foram afastados ou renunciaram, centenas de técnicos foram substituidos por militantes políticos. Até 2016, o país viveu um apagão de dados, uma vez que os divulgados pelo Indec, evidentemente manipulados, perderam toda a credibilidade.
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É uma ironia da história, que justo a nação fundadora da primeira república moderna esteja a copiar práticas políticas de repúblicas bananeiras. É a América latinoamericanizando-se.
sexta-feira, 22 de agosto de 2025
VTNC
Num primeiro momento,não entendi. Só depois de concluir a leitura do texto é que cheguei ao significado profundo da sigla...e dirigida ao próprio progenitor! Confesso que fiquei abismado. Nem nos meus piores sonhos dispararia um VTNC contra meu pai, e,olha, tive sérias discussões com ele. É baixaria prá ninguém botar defeito.
É inacreditável que uma família tão rastaquera, mobilize corações e mentes de um país, ao ponto do progenitor ter sido presidente da República, um filho, senador, um terceiro, deputado federal, que, pasmem, foi o mais votado do estado mais importante da nação e os outros dois, vereadores.
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- O Bolsonaro não carrega feridos.
(frase cunhada no meio militar a respeito do capitão)
- Ele próprio atira nos seus soldados. E pelas costas.
...referindo-se a Jair Bolsonaro.
(Gustavo Bebbiano, ex-ministro de Bolsonaro)
O próprio já fez apologia da tortura feita pelo em diversas ocasiões.
Prontuário prá acabar com a reputação de qualquer ser humano.
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Ser o que são, é um direito que assiste a Bolsonaro e seus filhos em uma democracia liberal. O que espanta é terem tantos seguidores/eleitores/simpatizantes. Há algo de podre neste reino. Onde foi que erramos?
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Vaticino que VTNC será a palavra/sigla do ano. Eu votaria nela.
domingo, 17 de agosto de 2025
É falcatrua prá todo o lado.
O brasileiro faz falcatrua, aceita falcatrua e não denuncia falcatrua
Esta permissividade/condescendência que perpassa nossa cultura é uma das causas que nos coloca no atoleiro em que nos metemos desde a colônia e do qual teimamos em não sair.
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Prá terminar bem o mês.
Admirável mundo novo
Heterofatalismo, desafiliação performativa da heterosexualidade, alexitimia masculina normativa... devem soar como grego para você. Prá mim também. Tomei contato com eles lendo um artigo de J.P. Coutinho para a Folha que se reporta a outro artigo do NYT Magazine - viralizou na Internet! - com um inglês bem complicado, recheado de phrasal verbs e gírias, que me deu um trabalho danado para entender. Confesso, entretanto, que valeu a pena. Conheci um pouco do que se passa no imaginário de uma novaiorquina de educação superior a respeito da relação homem-mulher nos dias atuais, recheado com o suporte teórico de acadêmicas up-to-date na matéria como uma ph.D em filosofia com especialização em filosofia feminista, uma sexual scholar, uma psicoanalista feminista e por aí vai...
Os neologismos típicos desta Novilíngua emanada dos acadêmicos dos departamentos de humanidades referem-se basicamente às demandas das mulheres não atendidas pelos homens em um relacionamento afetivo e o consequente desapontamento com o gênero masculino definido como heteropessimismo pela sexual scholar Ana Seresin. Para dar ares de tragédia ao drama, esse desencanto vem acompanhado do onipresente aguilhão do desejo - privately, jokes aside, I am quite susceptible to penis - escreve a autora, justificando o título do artigo : The problem with wanting men. É o heterofatalismo, também tomado de empréstimo da Seresin.
As desventuras são postas à mesa de almoço de um restaurante vegano em downtown Manhattan por uma terapeuta, uma historiadora, a autora do texto e sua amiga. Em termos de cenário e protagonistas, mais hipster impossível. Enquanto almoçam, desfilam histórias de seus relacionamentos e de amigas, com os homens e seu desapontamento com o comportamento deles. As queixas são inúmeras; uma delas refere-se à incapacidade masculina de comunicar-se em uma relação afetiva, que outra acadêmica definiu como alexitimia masculina normativa. Uau!
A rotina de frustração de expectativas com os parceiros amorosos, leva-as a uma crescente desafiliação performativa da heterosexualidade, outro neologismo da acadêmica Seresin. Ela sugere uma saída: A opção queer*, um relacionamento mais fluido e que foge dos estereótipos do padrão heterosexual tradicional que privilegia a dualidade e a inescapável dominação de uma das partes. Para a amiga da autora, em comentário pós-almoço, o relacionamento tradicional entre homem e mulher está morto. É preciso dar um basta na sofrência que ele traz.
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De cara, o artigo sugeriu-me a perspectiva da mulher como a medida de todas as coisas e o homem como uma massa a ser modelada de acordo com suas demandas, abordagem típica destes tempos de batalhas identitárias em que o feminismo radicalizado deste século desempenha papel importante. Qualquer relação afetiva exige lidar com a alteridade, que obviamente será anulada quando um dos parceiros se torna sua medida. A opção queer, tida como mais fluida, é uma das soluções sugeridas, mas a alteridade também lá estará.
Um adjetivo - fútil - que uma das protagonistas empregou para qualificar a insatisfação feminina diante do comportamento masculino, escrutinizado muitas vezes com lupa, chamou minha atenção. Tendo a concordar com ela. Será que uma mulher que vive na América profunda, é assaltada pelas mesmas angústias, vê problemas em tantos detalhes... ou considerará a abordagem também futilidade de uma mulher com situação econômica confortável de um grande centro urbano?
É curioso que mulheres tão cosmopolitas e supostamente independentes continuem a repetir atitutes old-fashioned como cobrar um compromisso dos homens em uma relação.
A atitude evasiva do homem, alvo de tantos queixumes não estaria indicando que ele não está investindo nessa relação como algo de duradouro, e que cair fora seria a melhor decisão? Se o comportamento é recorrente, não seria devido às escolhas equivocadas dos parceiros? Nem todos os homens esquivam-se de compromissos afetivos. Haveria tantos casamentos - afinal um compromisso - caso fosse esse comportamento recorrente?
Estou curioso para saber o que o futuro nos reserva. Relações mais fluidas entre homem e mulher? Huuum... talvez funcionem em Manhattan.
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* Queer refere-se a fugir da binariedade (macho/fêmea, masculino/feminino, heterosexual/homosexual) desafiando as ligações entre sexo, gênero e sexualidade. Ser queer significa ser ao mesmo tempo, macho, fêmea ou nenhum deles, ser masculino, feminino, nenhum deles ou uma mistura dos três, adotar qualquer sexualidade e mudá-la a depender das circunstâncias, negar que elas tenham significado por sí. (cap. IV) - (a tradução é minha)
Pluckrose, H., Lindsay, J., Cynical Theories, Pichstone Publishing, 2020.
Volto a esse livro em um próximo post.
terça-feira, 29 de julho de 2025
Longe desse insensato mundo....
Essa música é do século XII. Ouvi-la é como estar no céu.
...e muita gente boa por aí, diz que a Idade Média foi a idade das trevas.
sábado, 26 de julho de 2025
Terra arrasada.
Primeiro puseram edifícios/construções abaixo e fizeram de Gaza uma ruina. Agora querem completar o serviço, matando de fome os que não foram abatidos a bala ou pelos bombardeios. É uma infâmia, apesar do Hamas ser infame também. É de doer ver aquelas crianças desnutridas, corpos esqueléticos, rostos macilentos, com aqueles olhos enormes e fundos, à semelhança dos judeus nos campos de concentração nazistas. Dados do Ministério de Saúde de Gaza de junho de acordo com a agência Reuters, controlados pelo Hamas, contabilizavam 55000 palestinos mortos desde o início do conflito, mais da metade de mulheres e crianças. Gaza tem cerca de 2 milhões de habitantes, o que faz do conflito - provavelmente - ser o mais sangrento do século.
Lembrei de Mila 18, um livro de Leon Uris, sobre o ghetto de Varsóvia que lí na minha juventude e que me fez chorar com as atrocidades lá descritas. Lembrei-me do livro, pois o que os judeus hoje fazem em Gaza, de acordo com as agências internacionais de notícias, assemelha-se muito ao que os nazistas fizeram com eles no ghetto.
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O bicho-homem que foi aquinhoado com a razão pelo long and widing road da evolução ou por obra divina definitivamente não aprende a usá-la. Se o fato de sermos racionais e inteligentes levou-nos a produzir um Sócrates, Aristóteles e Platão na filosofia; Beethoven, Mozart e Bach na música: Newton, Einstein na ciência, Michelângelo, Da Vinci, Rembrandt e a turma da escola flamenga nas artes plásticas, também nos levou a ser açougueiros uns dos outros a exemplo do genocídio perpetrado pelos nazistas contra os judeus. E agora, por incrivel que pareça, os judeus querem repetir a dose com o povo palestino. Será que não aprenderam nada com a história?
terça-feira, 15 de julho de 2025
Le 14 juillet
Coincidência ou não terminei de ler ontem 1789 - o surgimento da Revolução Francesa de Georges Lefèbvre, Paz e Terra, 3a edição, 2019. De acordo com o título restringe-se ao seu surgimento e a seu ano inicial. A partida é dada pela convocação dos Estados Gerais pelo Rei em maio - sem ela não teria havido a Revolução de acordo com o autor. Prossegue com a revolução parisiense e a tomada da Bastilha (julho), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (agosto); o atestado de óbito do Antigo Regime. O último grande acontecimento do ano são as jornadas de outubro com o povo obrigando Luis XVI a se transferir de Versalhes para as Tulherias em Paris, acompanhado pela Assembléia. As jornadas foram a pá de cal no Antigo Regime pois trouxeram o Rei e a Assembléia para perto do povo, tornando-os reféns da Revolução.
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Diferentemente das Revoluções Holandesa no final do século XVI, da Inglesa que a precedeu em um século e da Americana, sua contemporânea, a Revolução Francesa foi violenta, especialmente nos anos que se seguiram a 1789. As outras tiveram um caráter reformista, a Inglesa ocorreu em clima tranquilo, foi burguesa e conservadora; a Francesa foi burguesa e democrática sob um ponto de vista de esquerda (Jaurès). Na Francesa, cerca de cem mil cabeças rolaram aos golpes da guilhotina, na fase da República da Virtude (eufemismo para Terror) de Robespierre, ele próprio uma vítima.
A Francesa foi a mais radical, de um ponto de vista marxista para quem a transição do feudalismo para o capitalismo moderno se fez através de duas vias: a revolucionária, pela destruição total do antigo sistema econômico e social ou pela via do compromisso que salvaguardava os antigos meios de produção na nova sociedade capitalista, de acordo com o posfácio da obra assinado por Albert Soboul. Na realidade não foi bem assim, pois a igualdade de direitos e não de posses, bem como o direito à propriedade estão lá na Declaração dos Direitos do Homem, para desespero da esquerda mais radical, muito simpática à República da Virtude de Robespierre e seus jacobinos, inspirada em Rousseau.
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Outra maneira de encarar o caráter revolucionário do movimento francês é o enfoque dado por Talleyrand :
O ideal da Revolução Francesa definido desde antes não era uma mera mudança no sistema social francês, mas nada menos do que uma regeneração de toda a raça humana... Eles os revolucionários tinham uma fé fanática em sua vocação - a de transformar o sistema social, raízes e ramos, e de regenerar toda a raça humana.
Pois é... regenerar a raça humana. Muito revolucionário, muito utópico, mas deu ruim ou como escreveu Hannah Arendt : - Terminou em desastre.
Voltarei ao assunto numa próxima postagem, para comentar a diferença entre os Iluminismos que se desenvolveram na Inglaterra, França e Estados Unidos, assunto de outro livro que estou lendo: Os Caminhos para a Modernidade de Gertrude Himmelfarb, historiadora americana conservadora. A frase de Talleyrand foi extraida de lá.
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Para Lefebvre, um historiador de esquerda, a Revolução foi o somatório de quatro revoluções: aristocratica, burguesa, popular e camponesa, talvez inspirado em Chateaubriand que afirmou que os patrícios começaram a Revolução, os plebeus a terminaram. Os capitulos iniciais são dedicados à descrição das ordens em que os 23 milhões de franceses estavam divididos à época: o clero composto por cerca de 100 mil sacerdotes, monges e freiras; os nobres com cerca de 400 mil, incluiam aqueles de berço, de espada e de toga (tribunais judiciais parisienses e das províncias) e finalmente o Terceiro Estado com o restante da população. Era composto pela burguesia (financistas, banqueiros, negociantes-fabricantes, comerciantes, manufatureiros, médicos, os homens da lei (juizes, procuradores, advogados) e os artesãos com suas corporações) e pelos camponeses, que compunham 3/4 da população, a maioria composta por homens livres. Estes só entraram na Revolução depois do 14 de julho. Até essa data, ela havia sido aristocrática e burguesa.
Ler nos capítulos iniciais, os privilégios desfrutados pelo clero e pela nobreza da época e as obrigações impostas ao Terceiro Estado em termos de impostos, transpôs-me à república de privilégios que é o Brasil atual, produto do patrimonialismo herdado da monarquia portuguesa que sobrevive até hoje.
E aí entra um terceiro livro que também estou lendo: O País dos Privilégios - Volume 1 : Os novos e velhos donos do poder, de Bruno Carazza, Companhia das Letras, 2024. Nele desfilam os atores do nosso Primeiro Estado - denominação minha - composta pelos donos do poder do setor público: a turma da toga (magistrados), do parquet (Ministério Público), a elite dos poderes Executivo e Legislativo, os advogados públicos, os fiscais da Receita Federal, a turma da farda, os políticos, os cartórios. Quanto aos atores do Segundo Estado, encarnados pelos donos do dinheiro e que compõem a classe empresarial o autor reservou o volume II ainda não publicado.
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Os franceses fizeram sua revolução no final do século XVIII, nós continuamos empacados num estágio pré-revolucionário em pleno século XXI. Inacreditável? Infelizmente não. De acordo com dados da Oxfam de 2023, 63% da riqueza do país está na mão de 1% da população; os 50% mais pobres detém apenas 2% dela. 1% da população mais rica ganha 40 vezes mais que os 40% mais pobres de acordo com dados da PNAD contínua do IBGE de 2023. Para chegarmos ao índice de Gini da França de hoje, precisaríamos de 43 anos caso nosso índice evoluísse ao rítmo do período de 2001/2014 conforme dados do IBGE e do Banco Mundial publicados no Poder360.
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Sei não, mas somos um projeto de nação que insiste em dar errado.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
O outro lado da cidade (maravilhosa?) (II)
Pois voltei a Madureira. O desfalque - também fui contemplado! - em meu salário do INSS obrigou-me a retornar à capital do subúrbio carioca de acordo com matéria do suplemento sobre Tijuca e Zona Norte de O Globo do dia 11. Razões históricas determinaram essa distinção para o bairro. A região desde os tempos da Colônia era um entreposto comercial uma vez que o Largo do Campinho era um cruzamento de caminhos indígenas que ligavam Jacarepaguá, Irajá, Pavuna e Méier. O surgimento do Mercadão em 1914 para abastecer a cidade, foi uma consequência natural dessa posição estratégica, aliada ainda à proximidade com estrada de ferro.
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A viagem desta vez foi menos tensa do que a primeira. Depois das indigestas tratativas com a entidade financeira, dirigí-me ao famoso Mercadão, distante 1000m a pé. No caminho, uma passarela sobre uma linha férrea, acho que desativada. Toda ela coalhada de ambulantes assim como os seus acessos. Ao longo da linha férrea muito lixo que parece não ser recolhido regularmente. A passarela é travessia para os fortes; advertiram-me que o risco de um assalto era grande; a atmosfera de fato sugeria, mas passei incólume, apesar de ser alvo das atenções com minha indisfarçável cara de gringo. Alí o Brasil mestiço aparece sem jaça; pretos e pardos dominam a paisagem que sugere um abandono completo do Estado, um daqueles lugares esquecidos por Deus.
Cruzado o Rubicão - ops, a passarela! - andei mais 300m também em calçadas coalhadas por barracas de ambulantes até alcançar o Mercadão. É um prédio de dois andares que abriga cerca de 600 lojas de acordo com o artigo; muitas delas vendem artigos religiosos,particularmente de umbanda; outras tantas lembram os velhos armazéns de secos e molhados vendendo grãos, farinhas, azeites; numerosas também são as que vendem utilidades domésticas e quinquilharias com preços acessíveis; havia uma que vendia animais vivos: galinhas e até um cabrito estavam por lá. A área com verduras e frutas, não visitei.
O Mercadão é a cara do subúrbio; é assim que o carioca denomina os bairros da Zona Norte e Oeste que se desenvolveram ao longo das linhas férreas da Leopoldina e Central do Brasil, um mundo bem diferente daquele da Zona Sul, tanto em termos de lojas quanto de público. Deveria ser ponto de visitação aos turistas que por aqui aportam, e, mesmo para os moradores da Zona Sul que se referem a seus habitantes com uma dose de preconceito. A imensa maioria nunca pisou aquele chão. Não nasci aqui, mas suspeito que o suburbano seja o mais carioca dos cariocas.
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A propósito, lembrei do título de um filme brasileiro - que não assisti - dos tempos de juventude: Copacabana me Engana . Depois de Madureira e do Mercadão posso dizer:
- Zona Sul me engana!
sábado, 28 de junho de 2025
O outro lado da cidade (maravilhosa?)
Ontem o boy aqui, botou os pés na Zona Norte. Fui a Madureira, tentar remediar um golpe aplicado por instituição bancária - a única agência na cidade está lá - no meu salário de aposentado.
Preocupado com minha segurança, coloquei roupas simples e discretas, tentando disfarçar o máximo possível minha condição de forasteiro potencializada pela minha cara de gringo. E lá fui eu de metrô para a Central. Peguei o trem para Japeri; os carros tinham ares de abandono externo, mas eram muito bem cuidados internamente. Pouca gente - eram 8:30h pois o destino ficava no contrafluxo. Bem diferente dos trens superlotados mostrados nos jornais televisivos. Ao longo do trajeto, muitas casas simples e na sua maioria, pouco cuidadas, geralmente de dois andares; atentei para o fato de haver pichação em muitas delas. Treze estações depois de uma viagem sem percalços, desembarco em Madureira.
Para sair da estação de trem e alcançar a rua, enfrenta-se duas longas escadas e um corredor atopetado de barracas de ambulantes. Nada de escadas rolantes. Ví idosos subindo e descendo por elas penosamente. Nas ruas de calçadas estreitas, muita gente, vestida simplesmente; a maioria pardos e pretos.
A agência bancária estava próxima, e com uma razoável fila para o atendimento, composta por muitos idosos - possivelmente aposentados - de condição muito simples. As histórias que ouvi, dos que estavam próximos, deixava transparecer a condição precária das suas vidas, tanto físicas quanto monetárias. Vinham de outros bairros, um deles com problemas de coluna, tinha dificuldade para ficar de pé. Todos com histórias de dívidas e empréstimos, contraídos sei lá com que cláusulas, pela instituição bancária que, se tinha aplicado um golpe em alguém da minha condição, imagina o que poderia ter aprontado pra cima desse pessoal. Senti a grandeza do meu privilégio, num país multifacetado como o nosso, vendo aqueles rostos vincados pela dureza da vida, potencializada por suas condições financeiras. Ouvi poucas queixas. Por incrível que pareça, observei um tom de resignação e até mesmo de aceitação da sua condição.
Já no interior da agência, aguardava minha vez sentado numa das muitas cadeiras que acomodavam aquele resignado exército Brancaleone. Volta e meia aparecia um funcionário sorridente e com uma gentileza afetada, oferecendo um cafezinho bem quente. Parecia deboche, e era! Não faltou o toque evangélico. Lá pelas tantas alguém ergue uma Bíblia e entoa um - Glória a Deus!
Fui atendido depois de uma hora - tempo razoável dentro das circunstâncias! - e voltei para a minha condição privilegiada de morador da Zona Sul prometendo retornar para uma visita ao Mercadão de Madureira, um velho sonho. Deram-me uma dicas de como chegar lá. Dá para ir caminhando a partir da estação de trem e isso me deu ânimo para uma nova visita ao outro lado da cidade. Talvez mais raiz daquele em que habito.
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Vivendo o seu sonho.
Foi argumento frequentemente utilizado para justificar a aventura da moça de Niterói que morreu tragicamente na Indonésia ontem. Comumente utilizado quando se questiona os riscos envolvidos na aventura e o conhecimento a respeito deles pelas pessoas decididas a fazê-la. Todos são unânimes em afirmar de que se trata de uma trilha com grau de dificuldade elevado, não apenas pela geografia do terreno, mas também das condições de clima, preparo dos guias, além da falta de informação ou falsa informação a respeito da aventura. Prefere-se, entretanto, jogar prá baixo do tapete as verdades inconvenientes e louvar o espírito aventureiro daqueles que o fazem.
Viver o seu sonho fica bem na boca de um adolescente, mas na boca de um adulto, de um educador deveria ser sempre seguida de uma adversativa. Tentar realizar um sonho sem estar equipado para alcançá-lo ou quando as condições são francamente adversas é temerário e pode ser fonte de frustrações, quando não de tragédias. Para cada João Carlos Martins - pianista e maestro que hoje completa 85 anos e um dos maiores intérpretes de Bach no mundo, e que chegou lá mesmo após ter perdido o movimento das mãos devido a uma doença rara - quantos ficam pelo caminho?
Entretanto, argumentar com o viver o seu sonho, vai te dar um carimbo de cara legal, otimista, que acredita na força do ser humano, além de elevar teu conceito no círculo engagé. Difícil é pontuar os riscos da aventura, posição mais responsável e adulta. Entretanto, vivemos em um mundo infantilizado como pontuou Amós Oz em uma entrevista para a Folha .
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Uma pessoa próxima tem uma filha que deseja ser médica e já se foram 3 anos tentando passar em vestibular de universidade pública sem sucesso. Universidade paga não pode cursar, porque implicaria em investimento financeiro que a família teria dificuldade para custear. E aí...vai continuar a viver o seu sonho já tendo perdido anos de vida profissional?
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Quero desconhecer gente que já conheço.
Sei lá se é a velhice, mas cresce em mim o desejo de ficar em casa, com meus livros, minhas comidas, meus vinhos. Estou repetindo minha mãe que sempre dizia que ficava bem em casa, no seu arrevesado dialeto, mescla de italiano falado no Trentino-Alto Adige e português. Até meu pai, mais sociável, na sua velhice, preferia a traquilidade do lar. Gostava de receber os netos, mas quando eles iam embora dizia: - Graças a Deus! Maior seu avanço nos anos, menor sua tolerância para com a agitação.
Com tal genética, eu fui além. Antissocial-raiz, quero desconhecer gente que já conheço, como escreveu Lusa Silvestre na sua coluna do Estadão. Interagir com os outros, cada vez mais, torna-se uma agonia. Repetindo minha mãe:
- Fico bem em casa.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
...mais anos 60, impossivel!
Paul McCartney afirmou em 1974 que God Only Knows foi a maior música pop já escrita. Deve ter sido um arroubo do momento, mas que ela exala o aroma dos sixties e de um mundo que parecia se abrir, ah... isso é!
Algo e/ou alguém está fora de lugar
O algo descrevo abaixo; o alguém, per supuesto soy yo. Não sei se estou sendo atropelado pelo tempo, ou se certas manifestações/comportamentos sociais que observo por aqui, estão ultrapassando todas as medidas do que é razoável e lógico para os arquétipos que construi ao longo da vida. O fato é que ultrapassam minha compreensão.
... e vamos aos fatos.
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MC Poze do Rodo (!?!), é um funkeiro carioca com mais de 15 milhões de seguidores. Foi preso, acusado de apologia ao tráfico e envolvimento com o Comando Vermelho - e solto uma semana depois através de habeas-corpus. Sua soltura provocou tumulto em frente ao Complexo de Gericinó, com ônibus tomados pela multidão e a polícia tendo que atuar com spray de pimenta, gás lacrimogênio, cassetete e Batalhão de Choque para conter a confusão.
Em cima de um deles, para dar as boas-vindas ao nosso herói, outra grande figura do pedaço, o rapper Oruam - o filho do dono, como ele mesmo se define em uma de suas letras. O dono é Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho condenado a 44 anos de prisão por assassinato, associação ao tráfico e formação de quadrilha. Cumpre pena na prisão de segurança máxima de Catanduvas-SP. O filhote que já pegou cana por duas vezes, tem 8,7 milhões de seguidores no Instagram e teve hit no topo das paradas do Spotify por 20 dias, dos 61 em que esteve disponível. Já cantou no Rock in Rio e no Lolapalooza, onde vestia uma camiseta com a foto do dono e a palavra Liberdade.
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Apreciem a excelência das letras de alguns de seus hits, com claro apelo sexual e apologia ao crime:
Rolé na favela de nave,
o som no último volume,
vou brotar no baile mais tarde,
vou usar um lança perfume,
botar a Glock pra dar um rolé pras piranha vê um volume,
é que na selva do urso sabe que nós é o assunto
(Rolé na Favela de Nave - Oruam)
O Estado é genocida com o morador.
Não tenho medo, eu sou filho do dono.
Maior responsa de sujeito homem,
de carro bicho eu fiz ela endoidar.
E hoje onde eu passo todas quer me dar.
(Oruam)
Oi, na VK os menor te acerta/
Só soldado bom de guerra/
Que te mira e não te erra/
Só AKzão na favela/
Com vários pentão reserva/
Aonde entrar, cês leva(...)
É bala nos três cu, é bala nos três cu/
De 62 é só papum e os alemão aqui nem tenta/
De Glock e de radin, fumando um baseadin/
Destrava o G3zão que se piar, nós quebra.
(Poze do Rodo)
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De acordo com o G1, os fãs de Oruam são um público jovem de todas as classes sociais, que gostam de ver ostentação de marcas, de carros, de motos, jóias. Pois é... ambos são filhos de comunidades - Poze nasceu na favela do Rodo, em Santa Cruz; Oruam na Cidade de Deus, mas hoje o primeiro mora em condomínio de luxo no Recreio dos Bandeirantes, o segundo em uma mansão no Joá. Aliás, hoje vi no UOL uma foto de Oruam curtindo a Itália com a noiva de acordo com a manchete. Noivaram em Paris, aos pés da Torre Eiffel. É a Cidade de Deus conectada com a Cidade do Papa, a Cidade Luz...
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Não é caldo prá pirar a cabeça de qualquer um?
segunda-feira, 9 de junho de 2025
... e tudo bem!
Acabo de saber que no dia 2 de junho foi comemorado o dia da Acompanhante, eufemismo para o dia internacional da Prostituta ou da Trabalhadora Sexual. Hoje temos dia comemorativo para tudo, mais do que justo que a profissão mais velha do mundo receba a homenagem. Os tempos são propícios; vender o corpo deixou de ser hoje, atividade que cause pruridos morais; há até sites de acompanhantes fazendo publicidade na capa de jornalões como a Folha, ou mesmo patrocinando clubes esportivos.
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Quem sabe num futuro próximo, apareça um curso para formação de profissionais na arte. A palavra de ordem agora é movimentar a economia.
sábado, 7 de junho de 2025
Simon
S de solteiro;
I de imaturo;
M de materialista;
O de obcecado ( pelo sucesso...);
N de narcisista;
Acrônimo que define uma síndrome que afeta o gênero masculino com mais de 30 anos nos dias atuais. Foi definida pelo psiquiatra espanhol Enrique Rojas, de acordo com O Globo de hoje.
Não me surpreende pois são valores muito prezados e em voga atualmente, à exceção de solteiro. No Brasil, solteirice não dá IBOPE, talvez na Europa...
terça-feira, 20 de maio de 2025
Periferias existenciais
Termo contundente usado pelo papa Francisco para referir-se ao caldo de cultura que impera nos nossos dias, particularmente entre boa parte dos bacanas - nossas elites intelectuais, econômicas e sociais. Ser considerado periferia dever ser afrontoso prá esse pessoal - um esculacho prá usar um termo em voga. Leão XIV na homilia da sua primeira missa como papa aos cardeais do conclave assim as definiu:
Ainda hoje não faltam contextos em que a fé cristã é considerada uma coisa absurda, para pessoas fracas e pouco inteligentes; contextos em que em vez dela se preferem outras seguranças, como a tecnologia, o dinheiro, o sucesso, o poder e o prazer. São ambientes onde não é fácil testemunhar nem anunciar o Evangelho, e onde quem acredita se vê ridicularizado, contrastado, desprezado, ou, quando muito, suportado e digno de pena.
O velho e bom Aristóteles no lixo.
A virtude não está mais no meio, mas em um dos extremos, o nosso. A moderação não é mérito, mas demonstração de fraqueza, covardia e indulgência. No radicalismo, habitam a autenticidade, a pureza de convicções e a generosidade. Na moderação, fazem morada a hipocrisia, a corrupção (pois se transige com o mal) e os nocivos interesses ocultos e negados. Quem pede para baixar as armas é, evidentemente, colaboracionista.
Wilson Gomes , Folha (07.07.22)
Pau que dá em Chico, dá em Francisco.
...pode até ser aplicado aos portugueses, criadores do ditado , mas não para seus descendentes do lado de cá do Atlântico. Por aqui, igualdade só no discurso e nos manuais. A começar pela Justiça, onde os rigores da lei ficam confinados aos despossuidos de qualquer influência nos andares superiores da nossa sociedade. A turma do andar de cima - endinheirados, aqueles bem relacionados e próximos aos Poderes da República - invariavelmente conseguem dela se evadir. O fracasso - pelo menos jurídico - da operação LavaJato mostra com eloquência que ricos e poderosos continuam impunes.
As batatas aqui pertencem aos vencedores como já vaticinara Quincas Borba, personagem machadiano. À Pasárgada de Drummond, só tem acesso os amigos do rei, aqueles que circundam o poder feito as mariposas em torno da luz. Roberto da Matta, um estudioso da nossa incapacidade em lidar com a impessoalidade da lei, descreve algumas dessas figurinhas carimbadas em seu artigo semanal para O Globo.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Porque hoje é dia de jazz
Dois biscoitos finíssimos com a realeza do jazz; prá começar Ella Fitzgerald canta Duke Ellington (Sophisticated Lady) acompanhada pela orquestra do próprio; depois é Duke e orquesta em Jeeps Blues.
Prá ouvir de joelhos.
segunda-feira, 21 de abril de 2025
Recado aos market..eiros
Certa vez, um jovem me perguntou: 'Na universidade, tenho muitos amigos que são agnósticos ou ateus; o que devo dizer para que se tornem cristãos?'. Nada, respondi. A última coisa que você deve fazer é falar. Primeiro, deve fazer; então, quem vir como você vive e administra sua vida é que perguntará: 'Por que você faz isso?' Nesse momento, você poderá falar. Com os olhos. Com os ouvidos. Com as mãos. E só depois com as palavras. No testemunho de uma vida, a palavra vem depois, é consequência.
Papa Francisco, Esperança, Paulus Editora, 2025.
Que descanse em paz!
sexta-feira, 11 de abril de 2025
A miséria do justiça brasileira (II)
Por fim, DEBORA RODRIGUES DOS SANTOS, no mesmo dia 8, na Praça dos Três Poderes, em Brasília/DF, destruiu e concorreu para a destruição, inutilização e deterioração de patrimônio da União, ao avançar contra as sedes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, fazendo-o com violência à pessoa e grave ameaça, emprego de substância inflamável e gerando prejuízo considerável para a União
Trecho do voto de Alexandre de Moraes, ministro do STF, que condenou a cabelereira a 14 anos de cana dura por ter pichado com batom a frase Perdeu Mané na estátua da deusa Têmis em frente ao STF durante os acontecimentos de 08/01/2023. Ficou presa por dois anos, mesmo sendo mãe de dois filhos menores. Sua prisão foi relaxada para domiciliar depois de inúmeros pedidos da defesa sempre negados pelo Todo-Poderoso Xandão sob a alegação de que a ré representava periculosidade social de acordo com a Gazeta do Povo.
Haja volúpia para punir! o ministro caracteriza o batom como substância
inflamável, recusa a petição para cumprir pena em domicílio a uma
trabalhadora, mãe de dois filhos menores, com a alegação de periculosidade
social.
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O presidente do Tribunal nunca disse que a corte “defeated Bolsonaro”. Foram os eleitores.
Trecho da Nota do STF em resposta a um editorial da revista The Economist de 16/04 que tece críticas a atuação da Suprema Corte brasileira. De fato, no texto original, escreveu-se : In 2023, the court's president boasted it had defeated Bolsonaro.
Posteriormente a revista corrigiu o texto para had defeated bolsonarismo, a palavra usada no discurso em tom de comício no Congresso da UNE em Brasília: - Nós derrotamos a censura, nós derrubamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia....
Trocar Bolsonaro por bolsonarismo não muda o sentido da frase. Quanto a alegação de que o nós referia-se aos eleitores, por favor! Qualquer indíviduo na devida posse de razão não vai entender a frase dentro dessa ótica, até porque outros ministros estavam ao lado do ministro Barroso no pronunciamento. Não quisesse ser parcial, não usasse nós e tampouco bolsonarismo.
A nota da Suprema Corte não passa de um exercício de expediente fartamente utilizado no meio jurídico; a manipulação das palavras transformadas em piruetas da retórica.
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O Perdeu Mané rabiscado na estátua da deusa grega da Justiça, representada de olhos vendados para significar imparcialidade tem tudo a ver.
quarta-feira, 26 de março de 2025
Milonga del solitario
segunda-feira, 24 de março de 2025
Ah, este país...
Em 04 de março, foi a vez de Affonso Romano de Sant'anna partir. Mais um.
Seus versos discorriam sobre o quotidiano refletindo as perplexidades e agruras do país, em especial, na segunda metade do século XX marcada pela ditadura militar . Seu poema - Que país é este? - é um retrato daqueles tempos, considerado sua grande obra.
QUE PAÍS É ESTE?
para Raymundo Faoro
Puedo decir que nos han traicionado? No. Que
todos fueran buenos? Tampoco. Pero alli está
una buena
voluntad, sin duda y sobretodo, el ser así.
CÉSAR VALLEJO
1
Uma coisa é um
país,
outra um
ajuntamento.
outra um
regimento.
outra o
confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno "Avante"
– e desfilei de
tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um
"futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
– discursando rios
e pretensão.
Uma coisa é um
país,
outra um
fingimento.
outra um
monumento.
outra o
aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda
nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão
do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?
Subo, de
joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como
qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos
papiros, no bolor
das pias
batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se
salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
– nos trai.
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a
Deus pertence,
que Deus nasceu
na Bahia,
que São Jorge é
que é guerreiro,
que do amanhã
ninguém sabe,
que conosco
ninguém pode,
que quem não
pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada
violentos,
quem espera
sempre alcança
e quem não chora
não mama
ou quem tem
padrinho vivo
não morre nunca
pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do
futuro,
antes tarde do
que nunca,
mais vale quem
Deus ajuda
e a Europa ainda
se curva.
Há 500 anos
somos raposas
verdes
colhendo uvas
com os olhos,
com tempestades
na boca,
com suíças
militares,
e papagaios em
Haia,
e sobradamos
mocambos,
joaquim silvério
e derrama,
e o futebol nos
conclama,
e salve-se quem
puder,
num carnaval de
mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.
Este é o país do
descontínuo
onde nada
congemina,
na eletrônica
oficina.
Nada nada
congemina:
a mão leve do
político
com nossa dura
rotina,
e nossa sede
canina,
e a nossa fé em
ruína,
a placidez
desses santos
e nossa dor
peregrina,
e nesse mundo
às avessas
– a cor da
noite é obsclara
e a claridez
vespertina.
3
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Esta é a rua em
que brinquei,
a bola de meia
que chutei,
a cabra-cega que
encontrei,
o passa-anel que
repassei,
a carniça que
pulei.
Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
– ainda me
morrerei.
4
Minha geração se fez de terços e rosários:
– um terço se exilou
– um terço se
fuzilou
– um terço
desesperou
nessa missa
enganosa
– houve sangue e
desamor. Por isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
ao nível da
emoção.
Caí de quatro
animal
sem compaixão.
Uma coisa é um
país,
outra uma cicatriz.
outra a abatida cerviz.
outra esses duros perfis.
Deveria eu catar os que sobraram,
os que se arrependeram,
os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
– expliquem-me a
mim
e ao meu país?
Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
como um tonto
guarani
e aldeado vacum.
Sei que daqui a pouco
não haverá mais
país.
País:
loucura de quantos
generais a cavalo
escalpelando
índios nos murais,
queimando
caravelas e livros
– nas fogueiras
e cais,
homens gordos
melosos sorrisos comensais
politicando
subúrbios e arando votos
e benesses nos
palanques oficiais.
Leio, releio os exegetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século.
– se não for um mal de vista.
Já pensei: – é erro meu. Não nasci no tempo certo.
Em vez de um poeta
crente
sou um profeta
ateu.
Em vez da epopéia
nobre,
os de meu tempo me
legam
como tema
– a farsa
e o amargo riso
plebeu.
5
Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo
– pois morro
sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
– e classes
despreparadas.
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a "história" ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
outros iam
ardendo um torpe agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
se segue a flor de
maio.
Às vezes se segue o fosso
– e o roer do
magro osso.
E o que era a revolução outrora
agora passa à convulsão inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas
sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
com quantos paus
se faz a derrisória estória.
Convertidos em alvo e presa da real caçada
abriu-se embandeirado
um festival de
caça aos pombos
– enquanto raiava
sangüínea e fresca a madrugada.
Os mais afoitos e
desesperados
em vez de regressarem como eu
sobre os
covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram
ao luto.
Vi-os lubrificando suas armas
e os vi tombados
pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
e serem
sepultados às ocultas.
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que os
advertisse do inevitável final
não pude lhes
poupar o sangue e o ritual.
Hoje
os que sobraram vivem em escuras
e européias alamedas, em subterrâneos
de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,
plangendo um violão com seu violado desejo
a colher flores em suecos cemitérios.
Talvez
todo o país seja
apenas um ajuntamento
e o conseqüente
aviltamento
– e uma
insolvente cicatriz.
Mas este é o
que me deram,
e este é o que
eu lamento,
e é neste que
espero
– livrar-me do
meu tormento.
Meu problema,
parece, é mesmo de princípio:
– do prazer e da realidade
– que eu pensava
com o tempo resolver
– mas só agrava
com a idade.
Há quem se ajuste
engolindo seu fel com mel.
Eu escrevo o desajuste
vomitando no papel.
6
Mas este é um povo bom
me pedem que
repita
como um monge
cenobita
enquanto me dão
porrada
e me vigiam a
escrita.
Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam
os faraós
enquanto
amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
enquanto me
assaltam a casa,
isso digo
aos montes em
desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.
Povo. Como
cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
– desconfia muito de mim.
Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
– nem eu posso
convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
o seduza para além
da ordem moral.
Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus
olhos.
Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos,
família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.
Daí, já vejo as
manchetes:
– o poeta que
matou o povo
– o povo que
só/çobrou ao poeta
– (ou o poeta
apesar do povo?)
– Eles não vão te perdoar
– me adverte o
exegeta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de
ruas, questionários
[e geladeiras,
e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e
fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista, bundas e
peitos fingindo que
[é coisa nossa.
Povo
também são os falsários
e não apenas os operários,
povo
também são os sifilíticos
não só atletas e
políticos,
povo
são as bichas, putas e artistas
e não só
escoteiros
e heróis de
falsas lutas,
são as costureiras e dondocas
e os carcereiros
e os que estão nos eitos e docas.
Assim como uma religião não se faz só de missas na
matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os
ferros de seus ombros
requer
poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.
Um país não pode
ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo
– é um ovo
que ora gera e
degenera
que pode ser coisa
viva
– ou ave torta
depende de quem o põe
– ou quem o gala.
7
Percebo
que não sou um
poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro.
Não há fazendas, morros,
casas velhas,
barroquismos nos meus versos.
Embora meu pai
viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos
[de assombração e uma alma milenar,
embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes
tecendo filhos nas
[fábricas e amassando a fé e o pão,
olho Minas com um amor distante,
como se eu, e não minha mulher
– fosse um poeta
etíope.
Fácil não era apenas ao tempo das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era ao tempo dos partidos:
– o poeta sabia
"história"
vivia em sua
"célula",
o povo era seu
hobby e profissão,
o povo era seu
cristo e salvação.
O povo, no entanto, não é o cão
e o patrão
– o lobo. Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio cão e lobo.
Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular
então mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
– que em carnaval
de fome
o próprio povo celebrou.
Povo
não pode ser
sempre o coletivo de fome.
Povo
não pode ser um
séquito sem nome.
Povo
não pode ser o
diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado
desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
e embora
o aumentativo de fome
possa ser
revolução.
Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem sobretudo impunemente.
Não mentem tristes,
alegremente mentem.
Mentem tão nacionalmente
que acho que mentindo história a fora
vão enganar a morte eternamente.
Mentem, mentem e calam
mas nas frases falam e desfilam de tal modo nuas
que mesmo o cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura,
mas não se chega à verdade pela mentira
nem à democracia pela ditadura.
Evidentemente crer que uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo permanentemente.
Mentem, mentem caricaturalmente,
mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem como o espelho transparente
mentem deslavadamente como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o
rio
mentem com a cara limpa e na mão o sangue quente,
mentem ardentemente como doente nos seus instantes de febre,
mentem fabulosamente como o caçador que quer passar gato por lebre
e nessa pilha de mentiras a caça é que caça o caçador
e assim cada qual mente indubitavelmente.
Mentem partidariamente,
mentem incrivelmente,
mentem tropicalmente,
mentem hereditariamente,
mentem, mentem e de tanto mentir tão bravamente
constroem um país de mentiras diariamente.