sexta-feira, 25 de julho de 2014

Copa do Mundo II

Gosto - e muito! - de futebol. Como espetáculo, como arte, fruição estética. Paixão apenas pelo Inter gaúcho - vale gol de mão na prorrogação!
Jamais coloquei o coração na ponta da chuteira em se tratando de seleção, vacinado com a ditadura que usou a Copa de 70 para promover o regime. Entretanto, o  carnaval fora de época  que essa Copa proporcionou onde os figurantes e seus figurinos coloridos foram chilenos, argentinos, colombianos,  holandeses, americanos, mexicanos, ingleses, até costariquenhos me faz pensar  que futebol extrapola as quatro linhas do gramado. Uma festa bonita, animada e pacífica. Tensão, apenas na semana final  com nuestros hermanos infatigáveis nas provocações.
Temia-se uma esculhambação próxima do caos mas este  país sempre surpreende, menos na sua opção pela mediocridade, que inalterada perpetua-se pelos séculos. A acolhida cordial que o povo proporcionou aos visitantes foi surpreendente - até a arrogância argentina foi relevada! A Copa no seu todo foi um sucesso e o velho e surrado povo resgatou as trapalhadas e os mal-feitos do Estado que longe do que prometeu, entregou para o gasto. Foi assim no Pan, será assim na Olimpíada. É o nosso jeito de ser. De dono da maior agência de publicidade do país - deve ter faturado horrores com o evento - lí que o sucesso da Copa mostra que tudo tem um jeito. É constatação óbvia, mas temos um passivo nada confortável nesse tema. Daí para celebrar  nossa capacidade de deixar tudo para a última hora, de improvisar se necessário, o passo é muito pequeno.
Eu, entretanto, pago horrores pelo legado da Copa. Nenhuma obra de mobilidade urbana atigiu-me e os preços na cidade dispararam. Até uma nova moeda surgiu: o surreal.  Vivo o pior dos mundos: preços escandinavos com serviço nigeriano.
Dentro do campo houveram bons espetáculos. Futebol bem jogado e a surra da Alemanha no Brasil. Lá no fundo rejubilei. Quem sabe ela nos traria lições. A julgar pelo que ocorreu até agora, vão mudar apenas o suficiente para que tudo continue como está. Com os eternos comensais do banquete locupletando-se. Vem sendo assim desde que esse país foi descoberto.
Dois momentos da Copa que me trouxeram a doce ilusão de que o ser humano é viável : os japoneses limpando a própria sujeira e a dos outros pelos estádios onde passaram e confraternização entre a banda Factor 12 holandesa e a banda da gloriosa Brigada Militar de Porto Alegre. Gratificante!



segunda-feira, 14 de julho de 2014

Lisbon Revisited

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja —
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada número de porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta — até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!...

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
26-4-1926

Existência

The lights must never go out,
The music must always play,
Lest we should see where  we are
Lost in a haunted wood;
Children afraid of the dark,
Who have never been happy or good.

George Orwell - Pleasure Spots
In Paul Tillich - Courage to Be

sexta-feira, 4 de julho de 2014