domingo, 31 de maio de 2020

Biscoito finíssimo!

Ella Fitzerald&Louis Armstrong in Summertime da ópera Porgy and Bess de George Gershwing

A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade

        E como eu palmilhasse vagamente
        uma estrada de Minas, pedregosa,
        e no fecho da tarde um sino rouco

        se misturasse ao som de meus sapatos
        que era pausado e seco; e aves pairassem
        no céu de chumbo, e suas formas pretas

        lentamente se fossem diluindo
        na escuridão maior, vinda dos montes
        e de meu próprio ser desenganado,

        a máquina do mundo se entreabriu
        para quem de a romper já se esquivava
        e só de o ter pensado se carpia.

        Abriu-se majestosa e circunspecta,
        sem emitir um som que fosse impuro
        nem um clarão maior que o tolerável

        pelas pupilas gastas na inspeção
        contínua e dolorosa do deserto,
        e pela mente exausta de mentar

        toda uma realidade que transcende
        a própria imagem sua debuxada
        no rosto do mistério, nos abismos.

        Abriu-se em calma pura, e convidando
        quantos sentidos e intuições restavam
        a quem de os ter usado os já perdera

        e nem desejaria recobrá-los,
        se em vão e para sempre repetimos
        os mesmos sem roteiro tristes périplos,

        convidando-os a todos, em coorte,
        a se aplicarem sobre o pasto inédito
        da natureza mítica das coisas,

        assim me disse, embora voz alguma
        ou sopro ou eco ou simples percussão
        atestasse que alguém, sobre a montanha,

        a outro alguém, noturno e miserável,
        em colóquio se estava dirigindo:
        "O que procuraste em ti ou fora de

        teu ser restrito e nunca se mostrou,
        mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
        e a cada instante mais se retraindo,

        olha, repara, ausculta: essa riqueza
        sobrante a toda pérola, essa ciência
        sublime e formidável, mas hermética,

        essa total explicação da vida,
        esse nexo primeiro e singular,
        que nem concebes mais, pois tão esquivo

        se revelou ante a pesquisa ardente
        em que te consumiste... vê, contempla,
        abre teu peito para agasalhá-lo.”

        As mais soberbas pontes e edifícios,
        o que nas oficinas se elabora,
        o que pensado foi e logo atinge

        distância superior ao pensamento,
        os recursos da terra dominados,
        e as paixões e os impulsos e os tormentos

        e tudo que define o ser terrestre
        ou se prolonga até nos animais
        e chega às plantas para se embeber

        no sono rancoroso dos minérios,
        dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
        na estranha ordem geométrica de tudo,

        e o absurdo original e seus enigmas,
        suas verdades altas mais que todos
        monumentos erguidos à verdade:

        e a memória dos deuses, e o solene
        sentimento de morte, que floresce
        no caule da existência mais gloriosa,

        tudo se apresentou nesse relance
        e me chamou para seu reino augusto,
        afinal submetido à vista humana.

        Mas, como eu relutasse em responder
        a tal apelo assim maravilhoso,
        pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

        a esperança mais mínima — esse anelo
        de ver desvanecida a treva espessa
        que entre os raios do sol inda se filtra;

        como defuntas crenças convocadas
        presto e fremente não se produzissem
        a de novo tingir a neutra face

        que vou pelos caminhos demonstrando,
        e como se outro ser, não mais aquele
        habitante de mim há tantos anos,

        passasse a comandar minha vontade
        que, já de si volúvel, se cerrava
        semelhante a essas flores reticentes

        em si mesmas abertas e fechadas;
        como se um dom tardio já não fora
        apetecível, antes despiciendo,

        baixei os olhos, incurioso, lasso,
        desdenhando colher a coisa oferta
        que se abria gratuita a meu engenho.

        A treva mais estrita já pousara
        sobre a estrada de Minas, pedregosa,
        e a máquina do mundo, repelida,

        se foi miudamente recompondo,
        enquanto eu, avaliando o que perdera,
        seguia vagaroso, de mãos pensas.


(Tido e havido como um dos maiores poemas da lingua brasileira)

quarta-feira, 27 de maio de 2020

sábado, 23 de maio de 2020

O Brasil como ele é

Pertinente  análise sobre sermos o que somos como nação faz Oscar Vilhena em seu artigo de hoje na Folha. Destaco um parágrafo onde ele é extremamente feliz ao colocar os termos para explicar a simbiose entre ricos e remediados que faz o Brasil ser o que é:
A natureza extrativista de setores que têm dominado a vida política e econômica brasileira, assim como a omissão e conivência dos estratos remediados de nossa sociedade não permitiram estabelecer uma sociedade menos desigual, disfuncional e violenta, pavimentando a ascensão ao centro do poder nacional dessa “necropolítica” que há muito imperava nas periferias brasileiras e que hoje zomba, dá de ombros e incentiva a morte de tantos brasileiros, como João Pedro e Valnir da Silva. E daí?

quarta-feira, 20 de maio de 2020

#FORA BOLSONARO!

Com toda a força que meus pulmões ainda não atingidos pelo coronavirus permitem gritar!
Afinal de que esgoto, brotou essa estranha forma de vida que no  dia em que o país ultrapassa o número de 1000 mortes diárias sai-se com essa em uma live, usando uma camisa da seleção brasileira:
Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma Tubaína. Viu como sou educado?
Antes encontrou-se com dirigentes do Flamengo e Vasco - ninguém usava máscara - , vestindo uma camisa do Flamengo, para propor o reinício das atividades esportivas no país.

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Éramos uma nau de insensatos vagando sem norte e sem porto para atracar. Agora, com essa estranha forma de vida eleita democraticamente para a Presidência da República, rumamos céleres para o abismo.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O caráter nacional

Mais de 73.000 militares receberam indevidamente o auxílio emergencial destinados aos trabalhadores informais afetados pela pandemia.

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Meu irmão que mora em uma cidade do sul do país, testemunhou pessoas chegando de carro ao banco para retirar seu auxílio emergencial.

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Um vendedor de uma loja de automóveis em cidade próxima a Brumadinho, saiu-se com essa ao ser questionado a respeito do aumento das  vendas de carros depois das pessoas afetadas pelo rompimento da barragem terem recebido uma bem nutrida indenização da Vale:
- Quem não tinha nenhum, agora tem dois.

...as usual!

Leio por aí que em Belém o serviço de empregada foi considerado essencial. Prá quem? Prá ela que se não aparecer, é demitida ou para o patroa que sem seus serviços, fica sem chão? Temo que para as duas. Em ambos os casos,  revela o quanto nos repetimos desde a colônia. Mudam os atores, o cenário, mas  os problemas permanecem. Continuamos os mesmos, como já cantou o velho bardo Belchior.

domingo, 10 de maio de 2020

Desiguais até não mais poder.

Torço o nariz prá quem fica batendo na tecla da desigualdade prá explicar as mazelas do país. Entendo que ela sempre existirá - não com as dimensões da brasileira, é claro! - e que o problema maior é a pobreza, opinião de um Prêmio Nobel de Economia, do qual não lembro o nome. Entretanto, os dados que sairam na semana passada da  PNAD contínua do IBGE de 2019  sacudiram-me no berço esplêndido de classe média média/alta em que vivo. Constato que faço parte dos míseros 1% mais abonados do país. Mais acachapante ainda é saber que 50% da população tem uma renda média per capita de até R$ 1260,00 e que a renda média dessa turma é de R$ 850,00. 
O preço desse abismo de renda já está se fazendo sentir no número de mortos pela pandemia no país. Muito provavelmente ocuparemos o segundo lugar nesse triste pódio da morte, atrás apenas dos Estados Unidos. 
 

Prá ela. No primeiro dia das Mães, sem ela.

Palhaço de Gesso