sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Hoje não tem!

...e mais as frases -  É apenas um jogo e mais tarde usaremos isso a nosso favor. Se bem que hoje não - resumem o jogo homem/mulher do ponto de vista feminino. Todas as mulheres  sabem que os homens morrem por sexo e elas usam essa fraqueza masculina a seu favor. É seu trunfo definitivo, para o desespero das feministas. 
Acompanho regularmente o que a Tati Bernardi escreve, mais para estar a par de como um  imaginário muderno se posiciona frente aos  usos e costumes do nosso tempo. Não nutro grande simpatia por sua visão de mundo mas  a sinceridade do texto  atrai-me  e a trai. O  que ela escreveu para  a Folha de hoje - Contra o machismo, a favor dos machos - é uma  óbvia rendição ao macho e - apesar do título - ao machismo. Basta ler o que está escrito. Os fatos que ela coloca,  desmontam as bravatas contra o machismo do texto.
Sei não, mas as feministas irão espernear.

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Eu jamais serei a "esposinha", de codinome "mulher de fulano". Espinha dorsal de tábua de passar roupa, mãos sobrepostas com delicadeza nos joelhos, dentes à espera de bajular com largura qualquer besteira que seu homem diga. A facilitadora de um moço bem-sucedido: não complica, não engorda, não compete (principalmente!) e não esquece de colocar a camisa polo preta na mala. Vez ou outra é espertinha (afinal, é 2015 e pega mal nas festas ostentar um troféuzinho sem uma mísera centelha): a cada 12 dias ela replica uma piadota espirituosa, uma vez por bimestre se arrisca num duplo sentido, parece que foi vista sendo cínica no penúltimo Finados.
Mas não vou negar: por um bom e saliente osso firme de bacia quadrada, periga eu ajoelhar para catar meias do chão. Curto quando reclamo "da roupa de corrida guardada de volta na gaveta" e ele responde, quase num urro ogro "é cheiro de macho, pô!". Fica lá o shortinho suado, lançado sobre meus vestidos, manchando de testosterona o ar ensimesmado do closet. Acho ótimo.
Eu só sei fazer quatro pratos: frango grelhado, omelete, frango desfiado e ovos mexidos. Minhas unhas estão péssimas, porque até o final de fevereiro entrego dois seriados, dois longas metragens e um livro. Quem tem tempo de ostentar sobrancelhas depiladas, calcanhares macios e cabelos hidratados com um cérebro-martelo-24 horas e uma pastinha rosa transparente cheia de contas pra pagar? No entanto, vou te mandar um sincerão: continue bravo. Adoro homem sério. Continue me tratando um pouco seco no café da manhã: "eu acordo assim".
Leia o jornal na minha frente, não tem problema. Eu que pago a assinatura do jornal, eu que comprei essa poltrona de couro caríssima em que você está refestelado como um rei, eu que escrevo para o jornal. Mas, por obséquio, mantenha-se nessa postura de comandante absoluto do lar, lendo as notícias na minha frente e as descartando no chão, como se a uma mulher não importasse nada disso. É apenas um jogo e mais tarde usaremos isso a nosso favor.
Se bem que hoje não. Estou com a lombar abusada, estou com os axônios esfolados, escrevi para uns dez personagens e me explorei tanto para eles que sobrou pouco pra você. Perdão, mas prefiro isso a ser uma doce garota de glúteos enrijecidos por corredores de lojas. Prefiro isso a ser uma moçoila "puts, nunca soube direito o que fazer da vida", sempre disposta a ceder sua existência, uma vez que esperar pelo marido é o melhor que elas fazem de seu dia.
Prefiro essa pancinha desgraçada (talvez fruto de uma postura entregue ao computador, talvez resultado de uma queda de colágeno associada a uma compulsão desenfreada por doces a cada vez que a vida entedia demais) à obrigação de malhar diariamente para ter um corpo que agrade a um cônjuge-empregador. Para algumas comunidades do século antepassado, vulgo gente comum que mora a poucas quadras de mim, usar o salto certo, a altura da saia certa, a micro tatuagem sensual certa na nuca, é visto como um dom, um talento. Talento não deveria ser associado a uma vida própria e profissional?
Anterior a ser uma fêmea, tô nessas de "vida pra produzir algo que importe" (pra falar a verdade: que provoque). Às vezes, para sapiens mais inseguros, isso é visto como "que tipo de gênero você assinala nos formulários?". De qualquer forma, seja qual for o sexo, hoje não tem. Tô sem saco. Contudo, admiro seu andar pesado "de homem precisando se descarregar", sua coceira seca na garganta: "algo de minha química diz que eu deveria ter voz altiva, ao invés de angústia". E você me puxa e ordena. É na brincadeira, eu sei, mas lhe imploro: sigamos assim. Sou contra o machismo e absolutamente a favor do macho. Eu ordeno que você mande em mim.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Plus ça change, plus ça la même chose (II)

Estão nos tratando como volume morto

Não são apenas os reservatórios de regiões, Estados e grandes cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, que descem ao volume morto e comprometem o abastecimento de água e de energia. É o país, em sua crise de inteligência, em sua perda de ambições, em sua miséria política, que vai secando. É o Brasil que atinge o volume morto.
Apesar das conhecidas melhorias das últimas décadas (num ciclo que consolidou instituições, deu ao país uma moeda, reduziu a miséria e promoveu considerável ascensão social), a "restrição energética" de nossa atual vida pública é preocupante.
Esgarçou-se ainda mais, nas últimas eleições, o tecido das relações entre o mundo político e a sociedade –se não em seu conjunto, ao menos em sua massa mais educada ou menos ignorante, que vive nas cidades, precisa de serviços melhores e percebe o crescente descompasso entre seus esforços pessoais e os que lhe são retribuídos pelos governantes e pelas empresas privadas.
As exceções, sempre louváveis, não interessam. O que interessa é a regra. E a regra que nos está sendo proposta é a do nós aqui e vocês aí: a consolidação de uma casta política medíocre e desonesta, que se compõe entre si e com setores do poder econômico ao sabor de suas conveniências, enquanto o resto assiste –e participa como vítima– do espetáculo da incúria, da incompetência, dos desvios de recursos e das coisas que não funcionam.
Não apenas as grandes coisas, como a saúde, a educação ou a segurança. É a burocracia do dia a dia, são os espaços públicos mal organizados, as perdas de tempo desnecessárias, as extorsões contratadas que vão dos impostos e juros bancários aos preços da sofrível telefonia e do acesso veloz à internet.
Bem mais do que exageros e inverdades inerentes à disputa eleitoral, o que se viu nas últimas eleições foi a mentira deslavada, a ficção mal intencionada, a tapeação mais cínica.
Vitoriosos os farsantes, segue o show, que nem a claque já se anima a aplaudir. Não há nenhuma prestação de conta, nenhum tipo de esclarecimento adulto e minimamente franco aos cidadãos. A mensagem é: "fazemos o que nos interessa e vocês por favor não atrapalhem".
Somos tratados como crianças que não entendem nada, fáceis de enganar –basta contar uma lorota que está bom. Ou seja, a regra, ao que parece, é nos converter em volume morto.

Marco Augusto Gonçalves
UOL, 27.01.2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

MSB

Estou propenso a fundar esse movimento com a certeza de que irá possuir  mais membros que aquele dos sem terra e sem teto mesmo estando na terra dos favores e da mamata. É o Movimento dos Sem Boquinha.
Você que nunca se beneficiou do compadrio, de uma ação entre amigos, de alguma relação de parentesco, da bajulação e subserviência para subir na vida ou arrumar uma benfeitoria em algum cargo público ou do estado, venha se juntar ao MSB.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Aridez

Viver é transitar entre o sórdido e o sublime. Vivemos no fio da navalha, oscilando entre um extremo e outro. Somos seres ambíguos. Ninguém e nada é perfeito. Não tenho ilusões. Na verdade não quereria tê-las, pois sou um romântico. Por isso ando atordoado.
Não sei se atribuo aos tempos, ou às  minhas escolhas, ao meu romantismo...   A sordidez é tanta e o sublime anda tão escasso. 
Escrevo isso porque acompanho o ocaso da relação de um casal muito próximo. É desolador. 
Será o ser humano viável? Alguém já escreveu  que a Terra é o inferno do Universo. Sempre considerei um exagero. Além disso o planeta é muito bonito prá merecer isso. 
Mas querem saber de uma coisa? O que vejo, ouço e vivencio com os personagens com quem contracenei nesses últimos anos...está fazendo com que passe  a aceitar o que considerava um despropósito como verdade acabada. Quanta miséria existencial, meu Deus!

domingo, 18 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie (II)

Subscrevo in toto,  menos quando ele diz que palavras não matam. Infelizmente elas podem matar, não fisicamente como um AK-47, mas psicologicamente, moralmente....assim como cartuns, charges...
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Não existe "mas" em relação ao que aconteceu na redação do "Charlie Hebdo". Pessoas publicaram algumas charges, e outras pessoas as mataram por isso. Palavras e imagens podem ser belas ou repugnantes, agradáveis ou enfurecedoras, inspiradoras ou ofensivas, mas elas existem em um plano diferente da violência física, quer você queira chamar esse plano de espírito, imaginação ou cultura --e combater palavras e imagens com violência é uma ofensa ao espírito, à imaginação e à cultura que caracterizam os humanos. Nada pode mitigar essa monstruosidade. Haverá tempo para analisar por que os assassinos o fizeram, tempo para decompor o passado e a origem deles, suas ideologias, suas crenças, tempo para sociólogos e psicólogos ampliarem a compreensão do que aconteceu. Haverá explicações, e as explicações serão importantes, mas explicações não são a mesma coisa que desculpas. Palavras não matam, elas não devem ser combatidas com a morte e elas não apagarão a culpa dos que mataram.
Mas repudiar o que foi feito às vítimas não é o mesmo que se transformar nelas. Isso é verdade no plano mais simples: não posso ocupar o eu de outra pessoa, não posso compartilhar a morte de outro. É verdade também ao nível moral: não posso me apropriar dos perigos que outras pessoas enfrentaram ou do sofrimento que suportaram, não posso colonizar sua experiência, e é arrogância fazer de conta que posso. Não seria necessário explicitar isso, não fosse pela enxurrada de hashtags, avatares e posturas assumidas online proclamando #JeSuisCharlie, que submerge as distinções e passa por cima do que é importante. "Precisamos todos tentar ser 'Charlie', não apenas hoje, mas todos os dias", pontifica a "New Yorker". O que diabos isso quer dizer? Na vida real a solidariedade assume muitas formas, quase todas difíceis. Este tipo de solidariedade fácil, de baixo custo e isenta de riscos só é possível na era das mídias sociais, onde você pode assumir uma atitude, alguém a vê em sua linha do tempo e então segue adiante e tudo é esquecido, exceto pelo sentimento de realização que lhe proporcionou.
A solidariedade é difícil porque não diz respeito a identificações imaginárias. Exige esforço para transpor o abismo implícito em não ser outra pessoa: por exemplo, reconhecer que alguém morreu por ser diferente de você naquilo que fazia, acreditava, era ou vestia, não por ser igual. Se pessoas que estão sentindo sofrimento concreto ou choque ou indignação abstratos se reconfortam ao proclamar uma unidade que parece preencher o vazio, isso cumpre uma finalidade emocional. Mas não se deve confundir esses credos cartesianos proclamados no Twitter --sou "Charlie", logo existo-- com atos políticos.
O objetivo parece ser apagar diferenças; e talvez isso seja apropriado no caso das charges do "Charlie", cuja força era derivada do desprezo pensado que manifestavam em relação a pessoas que tinham a temeridade de ser diferentes. Muitos citaram Voltaire. A mesma frase está presente em todo lugar em minhas várias linhas do tempo: "Não concordo com o que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo". 

LIVRE EXPRESSÃO "Essas 16 palavras dando a volta ao mundo falam mais alto que o pipocar de balas e representam cada caneta que é brandida por um braço estendido", diz um site de jornalismo australiano. (Deixemos de lado o fato de que elas não foram escritas por Voltaire, mas por um de seus biógrafos). Mas a maioria das pessoas que as repetem não quer dizer exatamente isso. Na realidade modificam sutilmente a mensagem voltairiana: a mensagem hoje é "tenho que concordar com o que você diz para poder defendê-lo". A que outra razão se deve a insistência de que não basta condenar a matança? Não: todos nós precisamos endossar as charges, e não só isso, republicá-las. Assim, a "Index on Censorship", uma revista que antigamente se opunha à censura, mas agora diz às pessoas o que podem ou não podem dizer, conclamou todos os jornais a republicarem as charges: "Pensamos que é apenas com a solidariedade --mostrando que defendemos verdadeiramente todos os que exercem seu direito de se expressar livremente-- que poderemos derrotar aqueles que recorrem à violência para silenciar a livre expressão". Mas repetir o que você diz é o mesmo que defender você? E será que é realmente "solidariedade" quando, em vez de eu me engajar com você, passando por cima de nossas diferenças, simplesmente papagueio o que você diz, sem refletir sobre o que significa?
Mas não: se você não reproduz as charges, você está em conluio com os assassinos, você é um covarde. Assim o site de direita "Daily Caller" publicou uma lista de covardes servos da jihad na mídia que se opõem à liberdade de expressão pelo fato de não fazerem o que foi ordenado. Castiguem esses censores até eles dizerem o que lhes mandamos dizer!
"Deveriam se envergonhar!", escreveram em sua conta do Twitter. Se você não concordar com o que disse o "Charlie Hebdo", os terroristas terão vencido.
Com seu silêncio, você não está apenas se dobrando diante dos terroristas. De acordo com Tarek Fatah, colunista canadense com viés fascista evidente, o silêncio é terrorismo. "Se você é muçulmano, está nas redes sociais e ainda não tuitou 'Eu sou #CharlieHebdo', então você é islâmico e é nosso inimigo", escreveu ele.
É claro que qualquer muçulmano no Ocidente sabe que ser chamado de "nosso inimigo" é uma ameaça direta; você tirou o cartão "vai para Guantánamo". Mas pense no seguinte: esse idiota pensa que está defendendo a liberdade de expressão. Como? Dizendo às pessoas exatamente o que elas têm que dizer e ameaçando as que resistem taxando-as de traidoras. O Ministério da Verdade abriu uma representação em Toronto.
Existe uma razão muito boa para não republicar as charges, razão que não tem nada a ver com covardia ou cautela. Eu me nego a postar as charges porque as considero racistas e ofensivas. Posso defender seu direito de publicar alguma coisa e ainda assim condenar o que você publica. Posso defender o que você diz e ainda dizer que está errado --não é essa a mensagem da frase de Voltaire (que não é de Voltaire)? Posso considerar que os governos não devam colocar na prisão as pessoas que negam o Holocausto, mas isso não me obriga a negar o Holocausto, eu mesmo.
É verdade, como diz Salman Rushdie, que "ninguém tem o direito de não ser ofendido". Você não deve chamar a lei para censurar ou calar o livre discurso apenas porque este o insulta ou fere suas convicções. Você certamente não tem o direito de matar porque ouviu alguma coisa que o desagradou. No entanto, sob o peso desses momentos de ultraje em massa, também esse truísmo se converte em uma afirmação diferente: que ninguém tem o direito de se ofender, e ponto final.
Eu me ofendo, sim, quando os setores já oprimidos de uma sociedade são insultados intencionalmente. Não quero participar. O crime cometido em Paris não suspende minha capacidade de julgamento político ou ético, nem me convence de que difamar escatologicamente a identidade e as crenças de uma minoria periférica seja uma atitude razoável. Mas isso significa rejeitar a única reação autorizada à atrocidade. Estranhamente, essa pressão de pares parece entrar em ação única e exclusivamente quando o islã está envolvido. Quando recentemente um racista atirou uma bomba em uma representação de uma organização americana de direitos civis, a mídia não insistiu que eu fizesse uma doação à NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor) a título de solidariedade. Quando um direitista islamofóbico fanático matou 77 noruegueses em 2011, a maioria deles num acampamento de jovens de um partido político, não notei muitas hashtags #EuSouNoruega nem chamados veementes para as pessoas ingressarem no Partido Trabalhista Norueguês. Mas o islã está presente para nós: ele nos une contra o islã. Apenas covardes ou traidores recusam a filiação ao clube "Charlie". A exigência de aderir, de endossar, de concordar, visa nos juntar todos em um rebanho onde ninguém tem a permissão de fazer ressalvas ou condenar: uma turba indiferente, onde divergir de outras pessoas é um crime de pensamento, enquanto a indiferença diante do sofrimento de outros que não fazem parte do rebanho é obrigatória. 

SÁTIRA Nos últimos dias ouvimos falar muito em sátira. Ouvimos que a sátira não deve causar ofensa, porque é uma arma dos fracos: "Os satiristas sempre chamam a atenção para as manias e fraquezas dos mais poderosos". E ouvimos que, se a sátira visa a todos, as investidas no racismo, na islamofobia e no antissemitismo podem ser explicadas e desculpadas. O "Charlie Hebdo" "tem sido uma celebração contínua da liberdade de zombar de todos e de tudo... Praticava uma sátira livre e indigesta, sem contornos ideológicos claros". É claro que a sátira que ataca todos os alvos e qualquer alvo por definição não mira apenas os poderosos. "A lei, em sua igualdade majestosa, proíbe não apenas os pobres, mas também os ricos de dormir debaixo de pontes", escreveu Anatole France; a sátira que fere tanto poderosos quanto fracos o faz com efeitos diferentes. Dizer que o presidente da República é um tarado não é o mesmo que acusar imigrantes muçulmanos não identificados de bestialismo. Algo que apenas irrita um pode aprofundar a opressão sistemática de outro. Defender a sátira porque ela é indiscriminada é reconhecer que ela discrimina os indefesos.
Kierkegaard, o maior satirista de seu século, relatou um sonho seu: "Fui carregado para o Sétimo Céu. Ali todos os deuses estavam reunidos". Os deuses lhe concederam um desejo: "Contemporâneos honrados, escolho uma coisa: que eu sempre possa ter o riso do meu lado". Kierkegaard sabia do que estava falando: crianças zombavam dele e lhe atiravam pedras nas ruas de Copenhague, por seu torso de macaco e seu andar desajeitado. Sua fantasia, em que ele vira o jogo, é a verdade em relação à sátira. A sátira é um exercício do poder. Ela reivindica superioridade, aspira vencer e, por isso, sempre se ergue sobre os fracos, julgando-os. Se ela ataca os poderosos, é porque existe uma ânsia subjacente à sua aspereza: a sátira deseja o que eles possuem. Como escreveu Adorno: "Aquele que tem o riso do seu lado não precisa de provas. Historicamente, portanto, durante milhares de anos, até o tempo de Voltaire, a sátira preferiu tomar o partido do lado mais forte, com o qual era possível contar --o lado da autoridade". A ironia, ele acrescentou, "nunca chegou a se despir por completo de seu legado autoritário, sua malícia não rebelde".
A sátira se alia ao que é autoevidente, às ideias recebidas, o arsenal dos fortes. Ela se inclui no time do futuro, esse rolo compressor, contra o passado em perigo de extinção, o time da opinião bem-sucedida contra o da opinião superada. A sátira sempre se alimentou da rejeição às minorias, aos povos marginais, aos modos de vida tradicionais ou em desaparecimento. Disse Adorno: "Toda a sátira ignora as forças desencadeadas pela decadência".
O "Charlie Hebdo", afirma agora a "New Yorker, "levava adiante a tradição de Voltaire". Esse é tido como o deus da sátira; qualquer francês ateu e irreverente é comparado a ele. Todo o mundo se recorda de suas diatribes contra o poder da Igreja Católica: "Écrasez l'Infâme!" (esmaguem o infame). Mas o que frequentemente é esquecido em meio à bajulação de sua espirituosidade é o fato de que Voltaire detestava uma religião sem poder, aquela cujos fiéis eram os outsiders de sua própria era, a minoria imigrante "medieval" e "bárbara" que assolava a Europa: os judeus.
O antissemitismo de Voltaire era abrangente. Em seu desprezo pelo supostamente "primitivo", antecipou muito do que é dito hoje na Europa e nos Estados Unidos sobre os muçulmanos. "Os judeus nunca foram filósofos naturais, geômetras ou astrônomos", Voltaire declarou. Sua frase remete ao islamófobo-chefe, Richard Dawkins:
"Todos os muçulmanos do mundo juntos têm menos Prêmios Nobel que o Trinity College de Cambridge. Mas eles fizeram grandes coisas na Idade Média", escreveu Dawkins em seu Twitter. 

ISLAMOFOBIA Os judeus, escreveu Voltaire, são "apenas um povo ignorante e bárbaro que há muito tempo soma a avareza mais sórdida à superstição mais odiosa e ao ódio mais invencível por todos os povos pelos quais são tolerados e enriquecidos". Quando algum ignorante americano de direita chama os muçulmanos de "goatfuckers" ("fodedores de cabras"), poderíamos pensar que ele está usando algum xingamento antigo da região dos Apalaches. Na realidade, está repetindo as piadas que Voltaire fazia sobre judeus. "Vocês alegam que suas mães não tinham relações com bodes, nem seus pais com cabras", Voltaire disse a eles. "Mas me digam, cavalheiros, por que são o único povo sobre a terra cujas leis proíbem tais relações? Algum legislador teria cogitado promulgar essa lei extraordinária se o delito não fosse algo comum?"
Ninguém deseja que Voltaire tivesse sido assassinado por suas calúnias. Se algum judeu ou muçulmano indignado (ele tampouco tinha muito apreço pelos "maometanos") o tivesse assassinado no meio de sua carreira, o mundo inteiro teria lamentado a abominação. Nos trechos mais "judeofóbicos" de seus escritos, ainda posso sentir prazer com seu texto incisivo --se bem que alguns possam ter dificuldade em apreciá-lo, mesmo 250 anos mais tarde. Mesmo assim, gostar de seu estilo não quer dizer que eu aceite sua mensagem piamente. #JeSuisPasVoltaire. A maioria de seus admiradores evita falar de seu antissemitismo ou o oculta. Eles sabem que, embora o escárnio de Voltaire divirta as pessoas quando é direcionado contra o poderoso e inacessível papa, torna-se sombrio e azedo quando difama uma comunidade fraca e desprezada. A sátira às vezes pode nos libertar, mas ela não é imune a nossos preconceitos ou ódios. Ela não deve apagar nossa capacidade crítica; qualificar algo como "sátira" não o isenta de ser avaliado. A superioridade que o satirista se arroga sobre os fracos pode ser arrogante e também sinistra. No ano passado, um ex-colaborador do "Charlie Hebdo" acusou os editores do jornal de conivência com o racismo e avisou: "A convicção de ser um ser superior, dotado do poder de olhar de cima para os comuns mortais, é a maneira mais certeira de sabotar suas próprias defesas intelectuais".
É claro que Voltaire não percebia que suas vítimas judias eram fracas ou impotentes. Já no século 18 ele as enxergava como tentáculos de uma conspiração financeira; sua propensão por gastar além de suas possibilidades e endividar-se com agiotas judeus ajudou em muito a moldar seu antissemitismo. Do mesmo modo, o "Charlie Hebdo" e outras publicações semelhantes nunca trataram os imigrantes muçulmanos como indivíduos, mas como agentes de alguma força maior. Não os viam como pessoas que se esforçam da melhor maneira que conseguem em um país inamistoso, mas como sinônimos de ignorância religiosa em massa, ou de fanatismo terrorista tribal ou, ainda, de riqueza petrolífera obscena. A sátira incorpora a pessoa humana em uma generalização inumana. O muçulmano não é simplesmente um muçulmano, mas um símbolo do islã. 

AGLUTINADOR É aqui que os islâmicos políticos e os islamófobos se encontram. Eles se apegam a ideologias aglutinadoras; fundem as pessoas em uma massa; apagam os atributos e aspirações dos indivíduos e os juntam numa visão totalizadora do significado da identidade. Um muçulmano é sua religião. Você pode responsabilizar um muçulmano pelo que qualquer muçulmano faz. Logo, todos os muçulmanos precisam postar #JeSuisCharlie obsessivamente em sinal de penitência ou para pedir desculpas pelo que o outro bilhão de muçulmanos está fazendo. O humorista e crítico social australiano Aamer Rahman tuitou: "Como um muçulmano qualquer, vou pedir desculpas por este incidente em Paris se pessoas brancas quaisquer pedirem desculpas pelo imperialismo, os ataques de drones e Iggy Azalea".
Algumas horas mais tarde ele foi obrigado a acrescentar:
"Ok, internet, recusar-se a aceitar a responsabilidade pelo assassinato de alguém ou a pedir desculpas pelo assassinato não quer dizer que você endossa ou celebra esse assassinato".
Essa insistência sobre a responsabilidade contagiosa, sobre a culpa coletiva, é o outro lado da moeda do #JeSuisCharlie. É o #VocêsSãoEstadoIslâmico; #VocêsSãoAlQaeda. Nossa solidariedade, nossa capacidade de nos fundirmos em uma unidade calorosa e inconsciente e sentirmos que estamos fazendo alguma coisa, depende da solidariedade involuntária de vocês, de vocês perderem sua individualidade declarada, fundindo-se numa massa ameaçadora. Não podemos nos unir aqui a não ser que imaginemos vocês, ali do outro lado, postados como nossos adversários. Os antagonistas são falsos, mas estão interligados, são inevitáveis. O discurso se endurece. Geert Wilders, líder direitista e racista holandês, disse que as matanças significam que é hora de "desislamizar nosso país". Nigel Farage, sua contraparte no Reino Unido, descreveu os muçulmanos como "uma quinta coluna, pessoas que carregam nossos passaportes e que nos odeiam". Juan Cole escreve que o ataque ao "Charlie Hebdo" foi um "ataque estratégico, que teve por objetivo polarizar o público francês e europeu" --"afiar as contradições". E os punhais de ambos os lados também estão sendo afiados.
Perdemos nossa capacidade de imaginar soluções políticas quando deixamos de pensar criticamente, quando deixamos que nossas identificações emocionais nos empurrem para substitutos artificiais da solidariedade e da ação. Perdemos nossa capacidade de reagir a atrocidades quando começamos a enxergar pessoas não como indivíduos, mas como símbolos. Mudar de avatares na mídia social é uma forma patética de desviar nossa atenção das realidades sociais em transformação. Para combater a violência, é preciso encarar de frente, sem medo, as desigualdades e práticas concretas que a alimentam. Você não vai combater a violência com atos de coragem em sua tela de computador, atos que não arriscam ou mudam nada. Para proteger a liberdade de expressão que está ameaçada é preciso ouvir e discutir o teor do que foi dito, e não negá-lo. Isso significa procurar criar um diálogo com aqueles que condenam ou discordam pacificamente, e não envergonhá-los até reduzi-los ao silêncio. Nada é rápido, nada é fácil. Nenhuma solidariedade é segura. Eu defendo a liberdade de expressão. Sou contra toda a censura. Repudio os assassinatos. Choro os mortos. Não sou "Charlie". 

Por que não sou Charlie

SCOTT LONG  
TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

Folha, 18.01.2014
 

domingo, 11 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

A questão não é o terror e suas consequências. Abomináveis. Não vou perder tempo.
É a liberdade de expressão tomada como absoluta. Liberdade absoluta é dar um tiro na própria cabeça, acho que foi Sartre quem escreveu. Quem a defende, o faria? O problema é o absoluta. 
Absoluta é um end point. End points são referenciais teóricos,  eles não existem no quotidiano. Tido e havido como absoluto, só o Deus dos cristãos, caso ele de fato exista.
 Existe limite para tudo. A pergunta é onde estaria este  limite que de alguma maneira vai se constituir numa censura. Até onde admitiríamos esse ponto de corte à liberdade de expressão.  O humor bête e noir do  Charlie Hebdo oferece  riscos. O condenável/injustificável  atentado de quarta-feira passada é uma prova disso.  Nunca o lí mas as capas que ví fazem abordagens agressivas a respeito de alguns temas. Quais os limites do humor e do riso e aqueles do insulto? É  um consenso muitas vezes difícil entre quem o  faz e quem é objeto.A Internet está aí para mostrar verdadeiros psicopatas à solta, ofendendo a Deus e o mundo, destruindo reputações impunemente. Basta contrariá-los.
O episódio do Charlie Hebdo  é o desfecho trágico  do encontro das liberdades absolutas de uma pena  e de um AK-47.
Fico com a linha editorial do New York Times, Washington Post e The Guardian que não publicam cartuns ou pixelizam detalhes por eles considerados ofensivos. Até onde eles estão se censurando ao preço de não ajudar a destampar panelas de pressão ou desencadear a irracionalidade dos ataques de quarta-feira  é a pergunta de um milhão de dólares.

PS - Poderão me tomar como favorável á censura, mas por uma questão de formação sempre preferi a liberdade ao pão. Logo...

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Feliz 2015 (III)

Conchavos de Ano Novo
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Deus - Aqui estamos juntos de novo. Continuo sem entender o que acontece no Brasil.
Lúcifer - Também estou perplexo.
Deus - E eu? Não podia imaginar que houvesse tantos justos no Brasil. Todo mundo lá agora é ético...
Lúcifer - Houve época mais fácil para vós, ó Todo Poderoso! Lembra quando mandou o dilúvio?
Deus - Lembro, só havia um varão honesto na face da Terra, mandei que ele construísse uma arca...
Lúcifer - E Sodoma e Gomorra? Até a mulher de Lot estava no esquema da Petrobras.
Deus - E essa história de passar o Brasil a limpo? Vai colar?
Lúcifer - Tenho minhas dúvidas. Estou informado de que alguns empreiteiros já armaram um lobby para pegar o serviço...
Deus - Vai haver licitação?
Lúcifer - Parece que não. O argumento é que se trata de tarefa urgente, um clamor nacional, os brasileiros não podem perder tempo...
Deus - Talvez fosse melhor a todos.
Lúcifer - Já aguentei muita coisa em minha existência. Quando seu filho andou pela Terra fez o diabo comigo. Principiante... pensei que fosse mole, o Gabriel e o Miguel estavam na conspiração, mas pularam fora e eu assumi o abacaxi sozinho... não havia STF para decidir sobre o mérito.
Deus - São águas passadas. O problema é que não fica bem nós dois ficarmos boiando nessa crise.
Lúcifer - Afinal, quem é o Grande Tentador? Vossa Onipotência ou eu?
Deus - No Brasil, a coisa é diferente. Passe uma temporada lá, apareça no programa do Jô, espalhe que tem um caso com a Gisele Bündchen.
Lúcifer - E qual a garantia de que não vou quebrar a cara de novo?
Deus - Para não chamar atenção, garanto empate no tempo normal.
Lúcifer - Não pode ser decisão por pênalti? Assim disfarçamos melhor.
Deus - E se o PT desconfiar e botar a boca no trombone? Eu não posso sofrer impeachment. Não tenho vice.

Tudo outra vez
Carlos Heitor Cony 
 Folha, 06.01.2015

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Feliz 2015 (II)

A beleza sobrevive. Eu diria, se impõe...apesar das previsões, dos tempos sombrios,  do ar pestilento. Do pântano também brotam flores.Elas estão  vestidas de branco e amarelo como pede a ocasião.
Auguri!















quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Feliz 2015!

Deverá ser um ano difícil. Se pior do que o ano que passou será o Apocalipse, segundo um colega meu. Ele é um otimista e espera um ano melhor. Eu - pessimista de carteirinha - vou ficar de sobreaviso. Afinal nada está tão ruim que não possa piorar. 
Queria postar fotos com flores brancas e amarelas, as cores do novo ano, mas achei essas fotos do amanhecer que fiz da janela do meu quarto há um ano atrás -  04.01.2014 -  mais apropriadas para esse ano que hoje começa. Há luz mas enormes nuvens negras a toldam. Ela conseguirá vencê-las? 2015 dirá.