terça-feira, 31 de julho de 2018

Espiritualidade

Tá na moda. E estando na moda,  incomoda.
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Luiz Felipe Pondé não deixa barato na sua crônica de ontem na Folha - Espiritualidade Contemporânea: 


A espiritualidade está na moda. Muita gente diz que tem espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é legal, não é materialista, mas nada tem a  ver com as barbaridades cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista light. Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$ 100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do trabalho físico.
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Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação entre espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas do cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.
O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina que nos fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições religiosas à mão.
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A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da condição humana e da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não apenas do deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de “errado” em sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e por aí vai).
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As grandes tradições espirituais sempre falaram de sofrimentos reais e não de modas culturais, como no caso que descrevi acima (day temple, Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais avassaladores é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto, repousar é justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço.
A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um recurso a ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas variadas de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana “ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente” punida com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma nova forma de doença mental.
Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem como um discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia (24/7, como dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em direção ao sucesso eterno.
Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar de forma desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma melhor gestão do karma.
Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma desconfiança profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma empreitada para a prosperidade.

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Marcio Tavares D'Amaral em  Fé, religião, radicalização  escrito para O Globo em  06.08.2016 é mais didático:


Espiritualidade, fé e religião são palavras que às vezes confundimos. É habitual ouvir-se alguém afirmar que tem a fé cristã, ou muçulmana. Seria mais correto dizer: Tenho fé em Deus ( Yahweh, o Pai, Allah) e professo a religião cristã, judaica ou muçulmana. A fé é uma relação profunda com o transcendente. Pode ser desordenada ou doce. Mas é sempre uma relação com o incomensuravelmente maior do que nós. A religião põe ordem na fé. Estabelece rituais, práticas e normas. É a lei. Tem a função de regular. Não permitir que as manifestações de fé em estado puro encham o mundo da diversidade subversiva da graça de Deus - E ainda há a espiritualidade. Essa não exige fé, e pode prescindir da religião.
A espiritualidade tem a natureza de uma sabedoria. Pode também pedir rituais. Mas não adora. Não há um deus na outra ponta. Não exige fé. Pode ser encarada como, formalmente, uma religião. O budismo é assim. É uma sabedoria de viver, baseada, paradoxalmente, na ausência de sentido da vida. E na busca de um desapego, de iluminações. As religiões do Livro, ao contrário. Afinal, livros servem para definir sentidos. Lê-se  para aprender a vida como Deus a quer. É em torno dos Livros que as religiões monoteístas se organizam. E a fé se fortalece pela prática dos ritos, ou se perde neles e fica seca. Às vezes há fé na reza de um rosário. Às vezes só há contas. Como pode acontecer com o masbaha que os muçulmanos desfiam enquanto conversam ou trabalham. Ou com a kipá judaica: humildade perante Yahweh ou apenas um chapéu. Espiritualidade, fé e religião podem, no limite, se excluir.

domingo, 29 de julho de 2018

sexta-feira, 27 de julho de 2018

In memoriam...

Oksana Sachko, ucraniana, foi-se aos 31 anos. Muito cedo! Era co-fundadora do Femen, exilou-se em Paris depois das violências sofridas em seu país mas não guentou a barra que a distância da terra natal e as demandas da cidade grande fazem para uma garotinha que nasceu e se criou no interior da Ucrânia - a julgar pelo pouco que li a respeito dela. Não conseguiu superar o peso da solidão. Solitário de carteirinha que sou, presto minha homenagem. Aliás, quem se suicida cedo na vida é porque sente a vida mais do que os outros. Longe de covardia, considero o suicídio um ato de suprema coragem.
Conheço o Femen pela imprensa que faz questão de dar importância a  suas manifestações pois o mulherio todo protesta de peito de fora prá alegria dos machos do planeta e de leitores de jornal e telespectadores. Não conheço em detalhes suas bandeiras contra a discriminação da mulher e opressão masculina e nem vou discutí-las, pois certamente  discordaria de muitas delas.
A segunda razão para homenageá-la e o fato de que  Oksana também era pintora. A marcante influência da igreja na infância fizeram-na pintar madonas de uma forma iconoclástica. Como sou meio fissurado nas madonas que os italianos pintaram na Renascença vou mostrar um de seus quadros. Instigante! para usar um termo dos nossos mudernos.
PS - Ela é responsável por minha rendição ao  Instagram.

  

terça-feira, 24 de julho de 2018

Dr. Bumbum

É mais um exemplo das escolhas erradas que fizemos como país. Estamos colhendo o que plantamos. 
O que me chamou a atenção foi o depoimento de uma das vítimas  que justificou a opção pela intervenção com o nosso herói com o fato de ele  ter mais de 500 mil seguidores no Instagram. Com critérios de legitimidade/credibilidade pessoais/profissionais como esse não se poderia esperar outra coisa que um final trágico como esse.
P.S.  Li por aí, que Neymar Jr., outro dos nossos heróis, tem 100 milhões de seguidores no Instagram. Caramba.... eu não consigo chegar a 10 seguidores no meu blog. Meu Deus, onde foi que errei?

sábado, 21 de julho de 2018

Desalento até a última gota.

O país não dá tréguas na sua marcha para a insensatez. O buraco em que nos metemos parece que não tem fundo. É impressionante o desalento das pessoas. Para ilustrar, algumas frases do primeiro post em seu blog após retorno de férias - Brasil cava seu abismo com insistência e método  -  do jornalista Josias de Souza, publicado pelo UOL em 17.07.2018:
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...volto ao trabalho com uma nova visão sobre o Brasil, o mais antigo país do futuro em todo o mundo.
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...Consolidou-se durante a Copa a sensação de que todos os países são difíceis de consertar. Só o Brasil é impossível....
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As histórias de horror que ouvimos nos últimos anos —de partidos antropofágicos em guerra permanente, de cofres estuprados, de desemprego selvagem, de impunidade sádica, de bombas orçamentárias —são meras camadas de um abismo que continua a ser cavado com persistência e método.
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Andre Aciman


....é egípcio, migrou para os EUA onde é professor de Teoria Literária na Universidade da cidade de Nova Iorque. Escreveu quatro romances, um deles: Me Chame pelo seu Nome, teve roteiro oscarizado em 2017. Os dois textos abaixo foram pinçados de uma entrevista que ele deu à Folha, de 21.07.2018.
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....para todos nós, a vida é apenas uma grande solução em suspenso, não há solução. Só há talvez a morte. De outra forma, as coisas não se resolvem, não há um encerramento para nada....
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O tema medíocre, você poderia dizer, é a sexualidade humana. O que poderia ser mais estúpido do que a sexualidade humana?

E, no entanto, olhe só, ela domina toda a nossa vida, ela basicamente nos marca e nos faz fazer todo tipo de coisa. É um impulso humano, que nós aceitamos e toleramos, e jogamos segundo as suas regras. Mas, ao mesmo tempo, não é exatamente o aspecto mais lisonjeador da nossa humanidade. Talvez seja, não sei.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Allez les bleus!

 e se foi mais uma Copa do Mundo,o evento dos eventos para nós brasileiros. Jogamos nossa redenção no futebol,  único tópico que nos põe na liderança das demais nações do mundo. Nos demais, raramente nos colocamos em posição superior à quinquagésima, num universo em torno de 120/130 países. E olha que somos uma das maiores nações do mundo em extensão territorial, população, o oitavo PIB do mundo, mas como disse Roberto Campos, não perdemos nenhuma oportunidade para não dar certo. A hora do futebol dá todos os sinais de que está chegando; afinal  estamos fora das finais fazem 16 anos, e o que nos ancora existencialmente como nação, pode deixar de existir. A perspectiva de perdemos o cetro do único reinado que nos cabia é bem real e vai nos deprimir ainda mais.  
 Noves fora o Brasil, onde  nas partidas da seleção, o país para literalmente como se uma bomba de nêutrons fosse nele jogada  - cessam violência, os crimes, as doenças, transferem-se cirurgias... -  é incrível a capacidade que o futebol tem de atrair aficcionados no mundo inteiro. Há muitas explicações para o fato, todas mais ou menos apoiadas na justificativa da aleatoriedade dos seus resultados. Transcrevo parte de duas delas:  
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Amamos o futebol porque ele é o esporte mais parecido com a vida. Não jogamos com o que temos de melhor, as mãos, mas com o que as regras e o contexto permitem, os pés. Jogamos (e vivemos ) sozinhos, mas junto aos outros, sem os quais não haveria jogo, nem vida, e nem mesmo conseguiríamos sonhar com quem somos.
Jogamos o melhor que podemos e, às vezes, somos os melhores ou nosso time é. Mas a frequência do evento máximo e definidor, o gol, é tão rara em 90 minutos que ser melhor está bem longe de estar certo de vencer. E definir esse “melhor” é imponderável como a vida. Um time pode ser melhor, mas no outro bate mais forte o coração, ou as mentes estão mais conscientes e compenetradas no que fazer. A tribo pode estar mais unida.
Os fatores são infinitos, muito mais complexos do que “saber jogar melhor”, como na vida. E a contingência pode ser decisiva, como nós, trapezistas da existência, bem sabemos. Um craque sozinho faz uma jogada genial e decide o jogo. Um grupo de amigos “forma uma corrente”, gera uma emoção e ganha o jogo. Sabe-se lá? Parece a vida.
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Sérgio Bessermann, Vida e Futebol, O Globo, 08.07.2018

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O futebol é uma arte inigualável, uma proposta de movimento humano que se aproxima muito de tanta coisa que ficou combinado que deve merecer elogios. Como a dança, por exemplo. O futebol não é uma brincadeira sem princípios ou destino, mas a execução de um sistema de efeitos e resultados múltiplos que se parecem muito com o esforço que o ser humano faz para sobreviver desde sempre.
Sempre gostei da versão de que o drible fora uma invenção de nossos filhos de escravos que, no final do século XIX, completavam a escalação dos times formados pelos filhos da elite inglesa no país. Como eles não podiam reclamar das faltas do adversário poderoso, os negros desses times inventaram o drible para escapar da violência dos filhos de senhores.
Como na vida humana, o futebol não se resolve apenas com o exercício de um desejo, da criação de estratégias e de táticas que inventamos para sermos bem-sucedidos. Ele depende também do acaso, da possibilidade de a jogada não se resolver do modo que planejamos. Podemos não fazer o gol que imaginamos, assim como podemos sofrer o gol que fizemos tudo para evitar. No futebol, a vontade dos atletas nem sempre é obedecida pela sorte em campo.
Só para dar alguns exemplos, a Holanda dos anos 1970, que reinventou o futebol, inventando um outro modo de jogá-lo, de um outro jeito muito mais belo e eficiente do que o até ali praticado, nunca foi campeã do mundo e teve poucos resultados da mesma envergadura em outros torneios internacionais. E o Brasil de 1950 ou de 1982 era muito melhor do que o Brasil campeão de 1994.
Não se trata apenas da “sorte” vulgar que se pode ter num jogo, dessa proteção metafísica que atribuímos muitas vezes a deuses, santos e forças semelhantes. Trata-se de uma característica imprevisível, alguma coisa que se parece muito com a própria imprevisibilidade de nossa vida, um acaso que pode nos negar o sucesso quando mais o merecemos. Ou, ao contrário, nos premia quando menos merecemos o prêmio. Não tem exercício físico, treinador competente, sábia estratégia ou craque absoluto que impeça esse acaso e sua cruel vitória em campo. Por isso que o futebol é tão belo e nos incomoda tanto. Porque não basta saber jogar.
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Cacá Diegues, O País do Futebol, O Globo, 15.07.2018