domingo, 25 de novembro de 2018

Somos o que o passado fez de nós.


(Faye para Samuel)
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-.....Enfim o que descobriram é que nossas lembranças são coisas físicas, tangíveis. Quer dizer, é possível ver a célula em que cada lembrança é armazenada. Funciona mais ou menos assim; primeiro você tem uma célula imaculada, intocada. Então ela é bombardeada e fica toda mutilada e disforme. E essa mutilação é, em si mesma, a lembrança. Nunca se apaga, na verdade.
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- Sabe aquele artigo na Nature? ....O que realmente me impressionou é que nossas lembranças estão no cérebro em si, costuradas na carne. Tudo o que sabemos sobre nosso passado está literalmente marcado em nós
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- Não é  óbvio? Toda lembrança é na verdade uma cicatriz....

Nathan Hill, Nix, Intrínseca, 2018

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Herói?

Todo o imbróglio envolvendo o CEO brasileiro do conglomerado Renault/Nissan, Carlos Ghosn, chamou-me atenção pois sempre dizia de mim prá mim: 
Ele era uma contra-exemplo para os pessimistas de plantão. No pântano também nascem flores!
Pois não é que ele trambicou também? Fiquei desalentado. Brasileiro não tem jeito!  Eram tão poucos os bons exemplos dos quais podíamos nos orgulhar mundo afora! Pois Carlos Ghosn é mais um cedro do Líbano que cai. (com trocadilho e tudo...)
Clóvis Rossi, aborda esse escândalo no mundo da alta finança,  no seu artigo de hoje para a Folha. Chamaram-me a atenção as definições de herói com que ele povoou seu texto.

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Para John O'Neil, presidente da Escola de Psicologia Profissional da Califórnia, herói foi Nelson Mandela, não o então presidente sul-africano, mas o prisioneiro que, nos 27 anos de cadeia, enfrentou "a escura noite da alma" e saiu inteiro : Quem consegue satisfazer a si próprio nessas horas escuras de encontro com a alma é o herói, ensinou O'Neil.
Herói é uma pessoa que permanece humana em uma sociedade desumana, ensinou por sua vez Elie Wiesel, esse extraordinário escritor, humanista, Nobel da Paz (morreu em 2016).
Herói é aquele que nunca acha que está sendo bem-sucedido, preferiu Theodore Zeldin (Oxford, Reino Unido)

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Pois olha! a primeira e terceira definições me caem como uma luva.
Lê-las, na noite escura que atravesso, é música para meus ouvidos. Alquebrado, aos farrapos,  arrastando-me pelo chão da vida,  e  herói...
embora, solitário!
Eles existem? Lembro de um.
John Wayne entregando Natalie Wood - linda! - para a família e sumindo na poeira da estrada no final de The Searchers dirigido por John Ford.
Quanta saudade dos westerns, onde o preto era preto e o branco era branco.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

História para adultos.

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O Nix, disse ela, era um espírito das águas que vagava pelo litoral em busca de crianças, especialmente aquelas intrépidas que andassem sozinhas. Ao encontrar uma, o Nix se mostrava a ela na forma de um grande cavalo branco. Desencilhado, mas amigável e manso. Abaixava-se, tanto quanto possível para um cavalo, oferecendo o lombo para que a criança montasse.
No início as crianças ficavam com medo, mas, no fim das contas, como poderiam recusar? Um cavalo só para elas! Então saltavam para cima dele e, quando o animal se erguia de novo, descobriam-se dois metros e meio acima do solo e se sentiam deleitadas - nenhuma criatura tão grande jamais lhes dera atenção. Isso as encorajava. Para irem mais rápido, as crianças então batiam os calcanhares no cavalo, que saía em um trote largo, e, quando mais elas se alegravam, mais rápido ele corria.
Desejavam que outras pessoas as vissem.
Desejavam que os amigos olhassem com inveja para aquele cavalo novo e lindo. O cavalo delas.
Era sempre assim. Primeiro, as vítimas do Nix sempre tinham medo. Depois sentiam-se sortudas. Depois confiantes. Depois, orgulhosas. Depois, aterrorizadas. Incitavam-no a correr mais e mais rápido, até alcançar um galope total, agarrando-se ao pescoço dele. Essa era a melhor coisa que já acontecera com elas. Nunca tinham se sentido tão importantes, tão cheias de prazer. E só então - no ápice da velocidade e da alegria, quando acreditavam estar em total controle do animal, em sua total posse, quando mais desejavam ser invejadas por isso, no auge da vaidade, da arrogância  e do orgulho - o cavalo se desviava da trilha que levava à aldeia e galopava em direção aos  penhascos à beira-mar. Corria em velocidade máxima rumo ao grande despenhadeiro junto às águas revoltas e turbulentas. E as crianças  gritavam e puxavam as crinas dele, choravam e pediam socorro mas era tudo inútil. O Nix saltava do abismo e despencava para o mar. As crianças continuavam agarradas ao pescoço dele enquanto caiam e, caso não morressem despedaçadas nas rochas, afogavam-se nas águas geladas.
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Quando a história do Nix foi contada a Faye, seu pai explicou que a moral era a seguinte: Não acredite em nada que pareça bom demais, para ser verdade. Mas depois ela cresceu e chegou a outra conclusão, que partilhou com Samuel um mês antes de abandonar a família. Contou a ele a mesma história, mas acrescentou a própria moral:
- As coisas que você mais ama são as que mais irão machucá-lo.
Samuel não entendeu.

Hill, Nathan, Nix (cap. 5), Intrínseca, 2018.

Para os mestres nas artes do coração.

Quisera ser o arco,
você a flecha.
Não será, nada será.
Não passo de traço,
personagem opaco,
irrelevância,
a desfilar pelo teu palco.

Siga seu coração!
Viva seus sonhos!
(Não são aforismos dos nossos mestres
nos caminhos meandrantes dos sentimentos?)
Pois não devo; a dor me consumiria.
É à  razão cruel e fria - logo a ela! - que recorro;
o derradeiro porto que me resta,
meu último grito de socorro.
Quanta  ironia!

sábado, 17 de novembro de 2018

Dormindo com o inimigo!

A Folha traz hoje uma matéria feita com a diretora do Latinobarómetro - Marta Lagos - tentando explicar a vitória do Bolsonaro. Chamou minha atenção o espanto dela -  a mim não espanta mais pois constato o fato diariamente nas minhas relações pessoais - quanto ao percentual incrivelmente baixo de brasileiros que acreditam em outra pessoa.


Quando vemos o nível da confiança interpessoal, ele é de 4%. É basicamente uma sociedade em que um não confia no outro, em que a confiança está se voltando apenas a pequenos grupos, como os familiares. É muito perigoso esse processo, porque destrói a possibilidade de se construir cidadania”, afirma Lagos.  E ela acrescenta: “fica-se com a sensação generalizada de que todos devem defender-se contra todos. E se a confiança no outro vai mal, muito pior vai a confiança em instituições e no Estado”.

Desse ser o maior valor no mundo! Pudera, com tanto trambique e trapaça na praça e na alcova também. O próprio Bolsonaro declarou nessa semana que confia full apenas no pai e na mãe. Não citou  mulher, nem  filhos....É preciso dizer mais! Não se constrói uma nação com esses índices. Vamos ter que mourejar muito ainda para chegarmos lá.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Parábola para os nossos dias.

É a página que abre Nix, primeiro romance de Nathan Hill, Intrínseca, 2018. O livro não é um portento literário, mas é uma crônica devastadora e bem-humorada das idiossincrasias do nosso tempo - obsessão por comida saudável, dependência mórbida do celular... - além de abordar com inteligência e sensibilidade as atemporais solidão e frustrações com a vida. Tem futuro o garoto!
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Havia um rei em Savatthi que certa vez convocou um homem e lhe ordenou que reunisse todos os habitantes da cidade que tivessem nascido cegos. Quando o homem completou a tarefa, o rei pediu que ele mostrasse um elefante aos cegos. A algumas pessoas ele apresentou a cabeça do elefante; a outras, a orelha; a outras, a presa, a tromba, o tronco, a pata, as ancas, o rabo ou o tufo de pelo da ponta do rabo. E a cada uma das pessoas o homem disse: "Isto é um elefante".
Quando o homem informou ao rei que a tarefa estava cumprida,o rei foi até os cegos e lhes perguntou:"Digam-me, cegos, como é um elefante?"
Aqueles a quem a cabeça do elefante fora apresentada responderam: "Um elefante, majestade, é como um cântaro de água". Aqueles a quem a orelha fora apresentada responderam; " Um elefante é como uma joeira". Aqueles a quem a tromba fora apresentada responderam: "Um elefante é como a relha". Aqueles a quem o tronco fora apresentado responderam: "Um elefante é como um arado". E todos os outros, da mesma forma, descreveram o elefante de acordo com a parte que lhes fora apresentada.
Então dizendo "Um elefante é assim, um elefante não é assim! Um elefante não se parece com isso, um elefante se parece com aquilo!" os cegos se puseram a lutar uns contra os outros, aos socos.
E o rei ficou imensamente satisfeito.

- Ditos Inspirados em Buda 


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Id

Os porões da alma
arrombam
as portas do nosso prosaico eu,
feito lava irrompendo pela encosta de um vulcão.
Selvagens,
obtusos e abjetos
vertem
cataratas incontidas de dejetos,
paixões desmesuradas,
põem a bulir
corações descuidados,
lançam vidas
em mares tormentosos
nunca dantes navegados.
Pudera eu deles fugir,
incapaz que sou para contê-los,
impotente em detê-los.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Pois a minha parece...

  - Nunca é bom sinal, quando a vida  parece um romance de Dostoievski.

diz a professora de literatura russa da Universidade do Kansas, Ani Kokobobo  in Helio Gurovitz Quando a vida parece um romance de Dostoievski , Época, 29.10.2018.

Talvez por isso ela doa tanto!

Hubris


A petezada costuma cultivar uma certa arrogância, uma certa superioridade, que não sei de onde tiraram isso.

Ciro Gomes - O confronto Final - Época, 29.10.2018

Pois é Ciro, acho que não é só a petezada. Quase toda esquerda está nesse bonde. Há muito observo isso e tento encontrar uma razão. Parece que preocupar-se com o social..., com os fracos e oprimidos...,  com as  desigualdades do país, lhes dá uma certa humanidade, uma aura ética que os faz distinguir-se dos demais, um álibi para justificar os heterodoxos meios. Eles são do bem porque suas prioridades são com o andar de baixo. Quem ousa discordar é... neo-liberal, opressor, conservador,...

sábado, 3 de novembro de 2018

Sabedoria


É preciso estar sempre embriagado. Com vinho, poesia, virtude, a escolher.

Charles Baudelaire

Waiting for...


À ESPERA DOS BÁRBAROS

 Konstantinos  Kaváfis

O que esperamos na ágora reunidos?

      É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      Que leis hão de fazer os senadores?
      Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      O nosso imperador conta saudar
      o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
      um pergaminho no qual estão escritos
      muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

      É que os bárbaros chegam hoje,
      tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

      É que os bárbaros chegam hoje
      e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

      Porque é já noite, os bárbaros não vêm
      e gente recém-chegada das fronteiras
      diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

                    [Antes de 1911]

poesia.net
http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet064.htm

O sentido da vida

Meu desencanto com um mundo carente de sentido vem de longe. O desencanto começou nas aulas de filosofia, no meu namoro precoce com o existencialismo - lembro da Náusea de Sartre; não é livro para se ler aos 20 anos!
A carência de sentido veio mais tarde com a morte do meu pai.
A frase seguinte extraída da coluna do Mario Sergio Conti para a Folha de hoje parece fazer justiça a minha passagem por essa existência. É o sentido da vida que me cabe:


O sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida”.


Capacidade de resistir... ( é a minha força!)
Enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros mas no modo de ser...  (sou tão diferente dos outros que foi a saída que me restou. Seja marginal, seja herói! ).
Palavras que são  música para minha existência  cansada de dançar para a vida.
Então é isso... ao apagar das luzes, achei  um sentido prá ela!