terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Dostoievsky

Agora eu pergunto a vocês: o que se pode esperar de um homem, esse ser dotado de qualidades tão estranhas? Derrame sobre ele toda benção terrena, mergulhe-o num  mar de felicidade de modo que nada senão bolhas de êxtase possam ser vistas na superfície; dê a ele prosperidade econômica de modo que ele não tenha que fazer mais nada senão dormir, comer  e se ocupar com a perpetuação da espécie, e mesmo assim, na pura ingratidão, pura maldade, o homem vai aprontar alguma maldade para você. Ele vai até mesmo arriscar sua comida e deliberadamente desejar o lixo mais prejudicial, o desperdício mais absurdo, simplesmente para introduzir seu elemento fantástico fatal em todo esse bom sentido positivo. Ele desejará reter exatamente seus sonhos fantásticos, sua asneira vulgar, simplesmente para provar a si mesmo - embora isso não seja tão necessário - que os homens ainda são homens e não teclas de um piano.....
E isso não é tudo; mesmo que um homem realmente não fosse nada senão uma tecla de piano, mesmo que isso lhe fosse provado pela ciência natural e matemática, mesmo assim ele não seria razoável, mas deliberadamente faria algo perverso por pura ingratidão, simplesmente para provar que está certo. E se não encontrar meios, ele planejará a destruição e o caos, planejará sofrimentos de todos os tipos para provar sua teoria. Ele jogará uma maldição contra o mundo, e somente conforme o homem consegue amaldiçoar (é seu privilégio, a distinção primária entre ele e os outros animais) talvez apenas por meio de sua maldição ele atinja seu objetivo - que é convencer a si próprio de que ele é um homem e não uma tecla de piano! Se vocês disserem que tudo isso também pode ser calculado e tabulado, caos e escuridão e maldições, de modo que a mera possibilidade de calcular isso tudo antecipadamente iria interromper isso tudo, e a razão iria tornar a se afirmar, então o homem supostamente iria enlouquecer com o intuito de se livrar da razão e provar a sua teoria! Eu acredito nisso, eu respondo por isso, porque o trabalho todo do homem realmente consiste em nada senão provar a sim mesmo a cada minuto que ele é um homem e não uma tecla de piano! Isso pode custar a sua pele, pode ser por canibalismo. E sendo assim, alguém pode evitar ser tentado a se regozijar de ainda não ter tido sucesso, e que o desejo ainda depende de algo que não sabemos?
Dostoievski, F in Kaufmann, W. (1975) Existencialism from Dostoievsky to Sartre, New York, Meridian,  citado por Peterson, J. (2018) Mapas do Significado - A arquitetura da crença, É Realizações.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A voz da sensatez

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Mas espero que todos entendam que o país entrou numa rota de autodestruição porque ninguém queria ceder, e andamos para trás. A renda do trabalho nos países emergentes fora da América Latina cresceu 127% entre 1995 e 2016, no Brasil cresceu 18%. Estamos num jogo destrutivo em que cada pequeno grupo defende o seu favor público. É o industrial que tem um subsídio do BNDES, é o outro que não consegue competir com o produto importado, o comércio ou serviço que tem regime tributário favorecido, o pequeno produtor que tem o benefício do Simples, o servidor público que tem uma aposentadoria privilegiada. Esse jogo de autopreservação dos privilégios, que é disseminado no Brasil, está levando (o país) ao retrocesso.
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Marcos Lisboa em entrevista para O Globo de 18.02.2019

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Nosso modelo civilizatório na parede

Impressiona a quantidade de artigos abordando o nosso impasse civilizatório. Cresce a consciência de que chegamos ao fundo do poço e são muitas as análises tentando explicar onde foi que erramos. Já citei o Zander Navarro em post anterior. Agora ele escreveu um extenso artigo  para a Folha, em 17.02, abordando o que considera basilar nesse impasse. Penso que há outras causas. A vida me ensinou e a ciência também que nenhum efeito é consequência de uma causa única. Mas enfim... o artigo tem contribuições valiosas para a reflexão.
Contardo Calligaris vai pela mesma linha na sua crônica de 21.02 para a Folha quando escreve que somos condenados ao atraso porque aqui, no país que vivemos é perigoso confiar nos outros.  Já citei também em post anterior,  a pesquisa do Latino Barômetro que indicou que apenas 4% dos brasileiros confia nos outros. Deve ser a taxa mais baixa do mundo. Fica muito difícil viver num ambiente minado pela desconfiança. 
...e vamos em frente... na esperança de virarmos o jogo. Como por aqui nenhum modelo que dá certo lá fora, frutifica, talvez por isso mesmo, para justificar nosso DNA, uma situação completamente inesperada enseje a oportunidade de acertarmos o passo. E lá se vão 500 anos tentando...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Pausa para a delicadeza e a sensibilidade (II)

Um piano derrama  notas  tristes e delicadas,
são como lágrimas que brotam furtivas,
de faces tisnadas pela dor.






domingo, 17 de fevereiro de 2019

Desencantado como yo...

...pelo socialismo, Jordan Peterson - o herói de 10 entre 10 héteros depois daquela entrevista para a Canal 4 da BBC - conta como acabou com  sua crença no socialismo ao ler O Caminho para Wigan Pier de  George Orwell:
Esse livro me solapou de vez - não apenas a minha ideologia socialista, mas minha fé nas posições ideológicas em si. No famoso ensaio que conclui o livro....Orwell descreveu a grande falha do socialismo e o motivo do seu frequente fracasso em atrair e manter o poder democrático (pelo menos na Grã-Bretanha). Orwell disse essencialmente que os socialistas, no fundo, não gostavam dos pobres. Eles simplesmente odiavam os ricos. Imediatamente entendi toda sua idéia. A ideologia socialista serviu para mascarar ressentimento e ódio, alimentados pelo fracasso. Muitos dos ativistas do partido que eu tinha encontrado usavam os ideais da justiça social para racionalizar a busca da vingança pessoal.
Quem é o culpado por eu ser pobre, inculto e não-admirado? Obviamente os ricos, bem estudados e respeitados. Não é conveniente, então, que as demandas da vingança e da justiça abstrata se encaixem? Então era correto obter recompensa daqueles mais afortunados que eu.
É óbvio que meus colegas socialistas e eu não estávamos dispostos a ferir ninguém. Pelo contrário. Estávamos dispostos a melhorar as coisas, mas íamos começar pelas outras pessoas. Acabei por perceber a tentação nessa lógica, a falha óbvia, o perigo, mas também consegui ver que ela não caracterizava o socialismo exclusivamente. Qualquer um que estivesse disposto a mudar o mundo transformando os outros deveria ser tratado com suspeita. As tentações dessa posição eram muito grandes para resistir.
Não era a ideologia socialista que representava o problema da época, mas a ideologia em si, a qual dividia o mundo de modo simplista, entre os que pensavam e agiam de modo adequado e os que não. A ideologia permitia que o crente se escondesse de suas próprias fantasias e desejos desagradáveis e inadmissíveis.
No rodapé da página citando  Orwell:
Às vezes eu olho para um socialista - do tipo intelectual, que escreve panfletos, com seu pulôver, cabelo desgrenhado e sua citação marxista - e me pergunto que diabo de causa ele realmente tem. Difícil acreditar que seja o amor por alguém, especialmente pela classe trabalhadora, de quem está mais distanciado do que qualquer pessoa.
George Orwell, 1981,  The road to Wigan Pier, London, Penguin
Jordan Peterson, 2018,  Mapas de Significado - A Arquitetura da Crença, É Realizações, p. 14
 


 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Um balde de água fria ...(II)

 Na mesma linha, Jung já tinha elaborado no passado o conceito de persona, que ele definiu como uma máscara que dissimulava  a individualidade.
Quando analisamos a persona, nós retiramos a máscara e descobrimos que o que parecia individual é, no fundo, coletivo; em outras palavras, a persona era apenas uma máscara da psique coletiva. Fundamentalmente, a persona não é nada real: ela é um compromisso entre o individual e a sociedade com relação àquilo que uma pessoa deveria aparentar ser. Essa pessoa recebe um nome, um título, exercita uma função, ela é isso ou aquilo. Em certo sentido, tudo isso é real, já em relação à individualidade essencial da persona envolvida, isso é apenas uma realidade secundária, uma formação de compromisso, para fazer o outros, com frequência, terem uma parcela maior do que ela. A persona é uma semelhança, uma realidade bidimensional
C.G. Jung, Misterium Conjunctionis, 1970 in J .B. Peterson, Mapas do Significado - A Arquitetura da Crença, É Realizações, 2018

Nelson Rodrigues tinha muitos aforismos a respeito da nossa dualidade como seres humanos. Lembro particularmente de uma delas:
De perto ninguém é normal.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Um balde de água fria, prá quem se acha perfeito, bonzinho...

Convencí-me ultimamente - aliás nada difícil chegar a essa conclusão dado o tempo em que vivemos - que o ser humano está longe de ser a primícia da criação, para usarmos termos cristãos. Vale a pena ler o que o neurocientista Christian Jarret escreveu a respeito em Aeon.com.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Pausa para a delicadeza e a sensibilidade.


Wow.... a pungência dos acordes desse violino e o contraponto austero do baixo contínuo! Ouvi pela primeira vez e apaixonei. Mais contemporânea impossível ! Parece escrita em nossos dias e no entanto tem 400 anos. I love Barroque!

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Tragédias Brasileiras VI


E não é que ele veio aportar no Arpoador? 
Foi depois da tempestade que desabou sobre o Rio na quarta-feira a noite. Ventos de até 110km/h. São os tais dos eventos extremos. Saldo - 6 mortos.
Na madrugada de sexta-feira, incêndio no Ninho do Urubu,  nos alojamentos - verdadeiras arapucas -  dos adolescentes que sonhavam ser craques do Flamengo. Saldo - 10 mortos. Naquela madrugada, Bope e Polícia Militar invadem os morros da Coroa, Falé e Fogueteiro atrás de bandidos. Saldo - 13 mortos. Há suspeitas fortíssimas de que foi extermínio.  Wilson Abatedor Witzel, dizendo a que veio.

Com tantas e tamanhas tragédias - a maior parte podendo ser evitada -  ocorrendo em espaços de tempo cada vez mais curtos atrevo-me a dizer que essa década marca o ápice do  desvio civilizacional em que nos metemos. Construímos uma nação com eventos históricos em que na maioria das vezes os piores superaram os melhores, em que o vício venceu a virtude. O resultado é um imaginário torto que para ser endireitado vai precisar de muita arte e engenho.
Gilberto Dimmenstein derrama  seu desalento no seu blog Catraca Livre escrevendo que somos um  um povo de merda. Acho que é mais apropriado do que país de merda. De fato o país  não merece ser rebaixado a tal nível. Tenho um amigo que ao ouvir a afirmativa dizia  que para ser de merda haveria muito que melhorar. Riamos muito diante da frase de efeito mas os inúmeros infortúnios que se abateram sobre o país na década estão lhe dando a razão. Como os rios vão ter ao mar,    o imaginário torto construído no país, desaguou todas suas mazelas nessa década. 

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Budismo (III)

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O Buda adotou uma posição agnóstica sobre a existência de um criador ou de um Deus. Quando lhe perguntavam se era um homem ou um deus, Buda respondia simplesmente: Eu estou desperto. Durante a sua vida, houve  catorze perguntas às quais o Buda não respondeu, alegando que especular sobre estas coisas não conduziria à paz do Nirvana, nem à liberdade e nem ao final do sofrimento, que constituíam sua mensagem. Hoje em dia o budismo é considerado uma filosofia ética e psicológica, ou uma prática espiritual não-teísta, que não necessita de dogma ou crença para ser praticada e realizada.
 Quando lhe perguntaram, Deus existe ou não?, Buda ficou em silêncio. O universo tem um início e um fim? Novamente, ele permaneceu silencioso. Ele não achava que valia a pena especular sobre essas questões, porque não facilitaria o progresso em direção à liberdade e à paz. 
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De acordo com o Buda, cada um de nós é dotado de uma perfeita natureza búdica, que tem o potencial pleno para atingir a paz duradoura e a felicidade do Nirvana. Nesta promessa encontramos a riqueza de sentimentos da espiritualidade budista. Até que cada um de nós consiga purificar e transformar as nossas partes obscuras, deterioradas e iludidas, este sol interior permanece encoberto pelas nuvens da dualidade e da ilusão. 
O Buda ensinou que tudo é efêmero e interdependente e está em processo - sujeito ao carma e ao condicionamento.
Lama Surya Das, O Despertar do Buda Interior, Rocco, 2001. 
 
 

Pausa para a melancolia.

A minha cara!


sábado, 2 de fevereiro de 2019

Tragédia brasileira (V)

Assisti na TV  na noite de sexta-feira  e neste sábado a batalha pela eleição da mesa do Senado O que vi ali foi um circo de horrores. Foram ameaças verbais, físicas, fraude na votação, interferência do STF. Refiro-me ao que eu assisti. Imaginem  o que rolou nos bastidores na noite/madrugada entre as duas sessões.
As deficiências dos ocupantes das cadeiras da casa são gritantes, nem falo das éticas e de espírito público pela obviedade. São inclusive vernáculas.  O que abunda naqueles senhores e senhoras é a sagacidade.
Não podemos construir um país com gente daquela cepa. A renovação de quadros de fato foi grande, temo que para pior. Oxalá os tempos provem que estava errado. Gostaria.