domingo, 30 de junho de 2013

Aos surdos de si mesmos e de sua consciência.

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Não se deve considerar o mundo como uma espécie de bordel metafísico das emoções. Esse é o nosso primeiro mandamento. Comiseração, consciência, repulsa, desespero, arrependimento e expiação constituem para nós uma repugnante sensualidade.
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A maior tentação  para gente como nós é: renunciar à violência, arrepender-se, por-se em paz consigo mesmo. Muitos grandes revolucionários renderam-se a essa tentação, de Espártaco a Danton e Dostoievski; são a forma clássica da traição da causa. As tentações de Deus sempre foram mais perigosas para a humanidade do que as de Satanás. Enquanto o caos dominar o mundo, Deus é um anacronismo; e toda a transigência com nossa própria consciência, uma perfídia. Quando fala a malfadada voz interior, é preciso tapar os ouvidos com as mãos.
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Os maiores criminosos da História... não são do tipo de Nero e Fouché, mas do tipo de Gandhi e Tolstoi. A voz interior de Gandhi fez mais para impedir a libertação da India que os canhões ingleses. Vender-se por trinta moedas de prata é uma transação honesta; mas vender-se à própria consciência é abandonar a humanidade. A história é amoral a priori; não tem consciência. Querer conduzir a história de acordo com as máximas da aula de catecismo significa deixar tudo como está.
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Pelo que me lembro o problema é o seguinte: o estudante Raskolnikov tem o direito de matar a velha? É jovem e talentoso; traz no bolso, por assim dizer, um compromisso não resgatado com a vida; ela é velha e extemamente inútil para o mundo. Mas a equação não se sustenta. Em primeiro lugar, as circunstâncias o obrigam a assassinar uma segunda pessoa; essa é a consequência imprevisível e ilógica de uma ação aparentemente simples e lógica. Em segundo lugar, a equação desmorona de qualquer forma, porque Raskolnikov descobre que dois e dois não somam quatro quando as unidades matemáticas são seres humanos...
- Se de fato quer minha opinião ..., todos os exemplares desse livro deveriam ser queimados. Pensa por um momento aonde essa nebulosa filosofia humanitária nos conduziria se fôssemos tomá-la ao pé da letra; se fôssemos nos apegar ao preceito de que o indivíduo é sacrossanto, e que não devemos tratar vidas humanas segundo as regras da aritmética. Significaria que o comandante de um batalhão não poderia sacrificar uma patrulha para salvar o regimento.
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Seu Ralkolnikov é, contudo, um louco e um criminoso; não porque se comporte logicamente ao matar a velha, mas porque está fazendo isso por interesse pessoal. O princípio de que o fim justifica os meios é e continua sendo a única regra da ética política; tudo o mais é apenas conversa fiada e se derrete. escorrendo por entre os dedos... Se Ralkolnikov tivesse matado a velha por ordem do Partido..., então a equação ficaria de pé, e o romance, com seu problema ilusório, nunca teria sido escrito; e tanto melhor para a humanidade.
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Só há duas concepções de ética humana, e estão em polos opostos. Uma delas é cristã e humana, declara o indivíduo inviolável e afirma que as regras da aritmética não se devem aplicar a unidades humanas. A outra, parte do princípio básico de que um alvo coletivo justifica todos os meios, e não apenas permite, mas exige, que o indivíduo, sob quaisquer condições, se subordine e sacrifique ao bem da comunidade, que pode dispor dele como de um coelho de laboratório ou de um cordeiro imolado em holocausto... Os embusteiros e os diletantes sempr procuraram associar as duas concepções; na prática, é impossível. Quem quer que arque com o poder e a responsabilidade descobre, na primeira ocasião, que tem de escolher; e é fatalmente levado para a segunda proposição da alternativa.
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Admito... que o humanismo e a política, em relação ao progresso individual e social, são incompatíveis. Admito que Gandhi é uma catástrofe para a Índia; que a castidade na escolha de meios conduz à impotência política.

(Trechos de O Zero e o Infinito de Arthur Koestler)

Os comunas calavam sua voz interior, seu eu - ficção gramatical -  sua consciência em nome do Partido, da causa. Os fins justificam os meios -  era sua máxima.
Hoje quantos não fazem o mesmo para serem bem  sucedidos na vida... conseguir seus objetivos... ter uma vida boa... respeitada e respeitável. Tudo numa nice. Sem grilos.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Alvíssaras!

Uma porta se abriu,
e por ela
a luz entrou!

(Como dizem os espanhóis : A ver... a ver!)

Antinomias

Desses tempos agitados...

Cura gay
(Projeto de Lei da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados)

Meu cú é laico.
(Cartaz da grande manifestação de quinta-feira no Rio de Janeiro)

Fracassamos...

Vendo essas manifestações todas, sinto como é atual aquela frase - acho - que do Lampedusa. Em uma tradução free - Mudar tudo para que tudo fique do mesmo jeito! Em 68, brigávamos contra a hipocrisia dos mais velhos. Quem são os velhos hoje? Nós. Olha o Renan... ele sim... o Renan  Calheiros. Fez parte do grupo que se denominou o novo MDB na época. Queriam oxigenar a política. Deu no que deu!
O país avançou muito menos do que poderia, continuamos uma sistema de capitanias hereditárias. Somo mais cínicos, mais cafajestes. Mudaram os atores nesse imenso palco da vida mas os dramas se repetem. Pior... sem utopias. Será que essa geração individualista, hedonista,  que quer tudo aqui e agora nos redimirá?
Como diz o espanhol: A ver... a ver!

sexta-feira, 21 de junho de 2013

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Solstício

Serena,
só,
no silêncio da sala abandonada,
minha alma
contempla o pálido sol do solstício,
esvair-se em meio a bruma pesada
de uma  tarde triste de outono.
No rádio, um piano metálico,
toca a melancolia
das Trois Novelletes  de Poulenc.

domingo, 16 de junho de 2013

Mientrastanto...

o diabo mora ao lado,
o futebol do Pirlo e do Iniesta
são pura fruição.
Deus nos visitando.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Mantra de todos os dias.

PRECE  ÁRABE


Deus,
não consintas  que eu seja
o  carrasco que sangra as ovelhas,
nem  uma  ovelha nas mãos dos algozes.

Ajuda-me a  dizer sempre a verdade
na  presença dos fortes,
e jamais  dizer mentiras
para  ganhar os aplausos dos fracos.

Meu Deus! Se  me deres a fortuna,
não me  tires a felicidade;
se me  deres  a força,
não me  tires a sensatez;
se me for  dado prosperar,
permita que  eu não perca a modéstia,
conservando apenas o orgulho da dignidade.

Ajuda-me a  apreciar o outro lado das coisas,
para não  enxergar a traição dos adversários,
nem acusá-los  com maior severidade
do que  a mim mesmo.

Não me deixes  ser atingido
pela ilusão  da glória,
quando bem  sucedido e
nem  desesperado quando sentir insucesso.

Lembra-me que  a experiência de um fracasso

poderá  proporcionar um progresso maior.

Ó Deus!  Faze-me sentir que
o perdão é o  maior índice da força,
e que a  vingança é prova de fraqueza.

Se me tirares  a fortuna,
deixa-me a esperança.

Se me faltar  a beleza da saúde,
conforta-me com a graça da fé.

E quando me  ferir a ingratidão
  a incompreensão dos meus semelhantes,
cria em  minha alma
a força  da desculpa e do perdão.

E, finalmente  Senhor,
se eu  Te esquecer, te rogo, mesmo assim,
nunca  Te esqueças de mim"


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dia dos Namorados II

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira

Dia dos Namorados I

Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

 Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

 — O que foi?! gritou vibrando toda.

 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

 Acabara-se a vertigem de bondade.

 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

domingo, 9 de junho de 2013

Sobreviventes

Recebi um telefonema de um amigo que praticamente convidou-se para me visitar. Percebi angústia na sua voz. Queria me dizer algo. O mote era assistir o jogo da TV mas acabamos mesmo foi conversando - entre  brancos da Borgonha, cuias de chimarrão e um Porto para arrematar -  sobre nossas vidas. 
Ambos preocupados com a miséria humana. Ele  com a finitude e os males do corpo. Eu com a precariedade e os males da alma. 
Ele frustrado especialmente com os filhos; sentia-os como parte sua mas paradoxalmente não os controlava. Eu falei-lhe das mulheres - continente ainda inóspito -  e das frustrações que colecionara com elas.  As dores da  última, parte as compartilhei aqui.
Éramos dois atores dessa peça - a vida - que tinham plena consciência de estar protagonizando  seu terceiro e derradeiro ato.

Bater e Apanhar

Há quem pensa que (sobre)viver se resume a isso. É muito pouco. Mas analisando apenas por esse aspecto devo dizer que ultimamente tenho apanhado horrores. A vida tem pegado pesado comigo

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A caça

Queria muito ver esse filme. Da leitura de suas resenhas e críticas brotou uma certeza  interior de que ele tinha algo a me dizer. O Calvário vivido por aquele professor falava-me de fatos recentes que o Destino colocou em minha vida. Um amigo que está a separar-se da mulher deve estar vivendo  situação semelhante. Ela saiu de casa e diz que era espancada. Ele nega veementemente. Por tudo que dele conheço, fico com sua versão. O mal, entretanto, está feito. Ele está pirando, perdeu o emprego e a bola de neve só faz aumentar.
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No filme é uma garotinha de cinco anos  que acusa o professor de ter abusado dela sexualmente. Mentiu...Foi, entretanto, a versão que vingou na escola. Abriu as portas do inferno para aquele quarentão divorciado - que se erro cometeu - foi o de lecionar em uma escola maternal. Deu a oportunidade para que uma rejeição afetiva associada a uma fértil imaginação infantil desencadeasse a tragédia que o filme mostra com rara felicidade.
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O mal mora ao lado. É um vírus oportunista, um jogador ardiloso que se insinua em nossas vidas e as faz em pedaços. Nos joga no olho do furacão . Se dele conseguirmos sair, será marcados.  Muita gente boa já perdeu a fé em situações semelhantes. Jó é o exemplo clássico. 
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Resta a beleza - sempre e só - das paisagens outonais com aquelas árvores a desfazerem-se de suas folhas que o tempo coloriu de amarelo e a graça de Fanny - a cachorrinha do professor - que adoraria ter em minha casa e que não sobreviveu à maldade dos homens.
Eu...sobreviverei?