Contardo Calligaris
Querem saber se acho que o Brasil melhorou desde os anos 1980.
Se estou de bom humor, digo que sim: falo da época em que o telefone era
imóvel para investimento, a inflação transformava qualquer crédito em
usura, carro usado custava mais que carro novo e comprar um notebook
significava "conversar" com um comissário da Varig, para que ele
trouxesse o aparelho de Miami.
Se estou de mau humor, digo que não: falo de nossos estudantes que se
perdem no ranking internacional, da mediocridade de grande parte da
classe política, da vagarosidade dos serviços básicos e, enfim, da
produtividade pífia, da ganância e da corrupção, que tornam absurdamente
caro tudo o que é nacional.
Seja qual for o humor, lembro que, nas últimas décadas, diminuiu
substancialmente a percentagem dos excluídos, ou seja, diminuiu aquela
miséria que situa alguém num barco à parte, na deriva e sem relação com o
rumo comum.
Mas logo paro: será que, ao longo dessas décadas, constituiu-se um rumo
comum? Diminuiu a exclusão, disse, mas será que passou a existir uma
comunidade na qual seja possível e valha a pena sentir-se incluído? Será
que existe, no Brasil, o sentimento de uma comunidade de destino,
passado e futuro? Será que o Brasil, como nação, existe dentro de nós
que aqui vivemos?
Na noite de 31/1, no Rio de Janeiro, um garoto de rua foi encontrado nu,
preso a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço. Ele foi
seviciado por uma turma de motoqueiros vigilantes. O garoto, nas
fotografias, parece um filhote esgarrado; mas cuidado com a ternura: se
você o encontrasse livre, com os amigos dele, no escuro do aterro do
Flamengo, você procuraria ansiosamente as luzes de uma viatura. Por
outro lado, provavelmente, o bando que o prendeu lhe inspiraria um medo
análogo, se não pior.
Enfim, alguns se indignaram pela ação dos vigilantes. Outros felicitaram
os vigilantes, conclamando que está na hora de os cidadãos de bem
reagirem.
Na Folha (pág. 3, 11 de fevereiro), o debate culminou com os artigos de
Rachel Sheherazade, âncora do "SBT Brasil", e Ivan Valente, deputado
federal pelo PSOL: Sheherazade cansada do "coitadismo" de esquerda, que
protege os criminosos, e Valente achando que a violência dos vigilantes
só gera "mais violência".
Não é preciso brigar, visto que linchadores e bandidos são filhos de um
mesmo problema endêmico: aqui, a coisa pública não vingou --o Estado,
para nós, é uma pompa, mais ou menos ridícula, ele não é nada dentro da
gente. Se não tem coisa pública, por que eu não viveria matando quem não
me entrega seu relógio? Se não tem coisa pública, por que eu não
lincharia quem me assalta?
Linchadores e bandidos vingam porque não vivemos num país comum (com
mesmos valores, história e antepassados para nos inspirarem). Habitamos
uma zona de tiro livre, ou seja, uma área de combate em que ninguém é
"dos nossos", mas tudo o que mexe é um alvo permitido.
Ao longo do debate, foi citada, mais de uma vez, a receita de Nova York
nos anos 90, "tolerância zero", como se fosse uma medida de repressão.
Não era. Nunca foi. "Tolerância zero" era uma estratégia para fazer
existir o espaço público. Sua moral: se você não quer assaltos no
parque, cuide das flores. Não deixe que mijem nos canteiros, e o número
dos assassinatos diminuirá. Diminuiu.
Não é que os criminosos tenham medo de flores. É que as flores
manifestam que a comunidade existe no coração e nas mentes de todos (e
ela vai se defender).
Por que não haveria em nós o sentimento de uma comunidade de destino? Há
razões antigas, sobre as quais se debruçam os intérpretes do Brasil.
Mas há também razões imediatas. Clóvis Rossi, na Folha de 13/2: "alguém
precisa aparecer com um projeto de país, em vez de projetos de poder".
Em 30 anos, desde que cheguei ao Brasil, parece que só assisti aos conflitos de projetos de poder.
Mais duas notas. 1) O sentimento de uma comunidade de destino, que é o
que faz uma nação, não tem nada a ver com o nacionalismo. Ao contrário, o
nacionalismo surge para compensar a falta desse sentimento. Portanto,
torcer no Mundial ou, como Policarpo Quaresma, falar tupi e tocar
maracá, tudo isso é uma grande perda de tempo.
2) Será que, nessa zona de tiro livre, só tem espaço para linchadores e
bandidos? Não, claro, há todos os outros, que são (somos) os "salve-se
quem puder" --com diferenças: alguns podem fugir para Miami, outros só
podem baixar os olhos e caminhar rente aos muros.
Folha, 20.02.2014
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