sábado, 22 de fevereiro de 2014
Shakespeare e a corrupção
Não se sabe ao certo se Shakespeare é
autor de “Eduardo III”. A peça aborda
um tema perene: governantes governam
governos e, no entanto, quase
nunca sabem se governar. O que fazem os políticos
corruptos, todos sabemos. Mudam os tempos
e diferem os costumes. Eles abusam da
imunidade e da impunidade, praticam o mais
descarado nepotismo, usam os serviços públicos
como se fossem direitos privados.
O rei Eduardo III (1312-1377) criou a Ordem
da Jarreteira, a mais antiga e importante comenda
britânica, concedida aos que se destacam
pela lealdade à Coroa. Jarreteira é uma liga
azul de prender meias de mulher. O criador da
Ordem de tão curioso nome casou-se aos 14
anos com a belga Phillippa, que lhe deu 13 filhos.
Mais tarde, apaixonou-se por Joan, condessa
de Salisbury, que o ignorou e insistiu em
manter-se fiel a seu segundo marido, malgrado
o assédio real.
Durante um banquete em Calais, em comemoração
à posse inglesa da cidade francesa, o rei tirou
a condessa para dançar, sob os olhares perplexos
da rainha Phillippa e da corte. Súbito, uma
das meias de Joan se desatou e desceu ao pé. O
rei, sem o menor constrangimento, apanhou a liga
azul e a amarrou debaixo de seu joelho esquerdo.
Frente ao murmúrio provocado por tão ousado
gesto, Eduardo III pronunciou a frase que se
tornaria o lema da Ordem da Jarreteira: Honi soit
quit mal y pense (Maldito seja quem pensar mal).
Vivesse em nossa época, Shakespeare teria à
sua disposição vasto material, menos nobre, é
verdade, descoroado, pois não convém comparar
Eduardo III com senadores que viajam às
nossas custas para cuidar da vaidade capilar e
nomeiam corruptos notórios como assessores.
Feita de barro e sopro, a natureza humana é
sempre a mesma. Sendo o sopro de natureza divina,
invisível e volátil, como todos os dons que
dependem de nossa liberdade de acolhê-los e
cultivá-los, fica o barro como o atoleiro no qual
metemos as mãos, os pés e a alma. Amolecido
pelo dinheiro da corrupção, torna-se ainda
mais maleável. O corrompido não passa de argila
fresca em mãos do corruptor.
A prova mais contundente de que Shakespeare
enfiou sua colher de pau na cozinha de Eduardo
III reside no fato de ele repetir literalmente,
em seu Soneto 94, a frase os lírios que apodrecem
fedem muito mais que ervas daninhas
(Lilies that fester smell far worse than weeds).
Aliás, em matéria de plágio, nossa senatorial
maracutaia não fica atrás. A vida extrapola a ficção.
Mas, quando a repulsa paralisa a plateia, a
impunidade campeia. De cima do palco eles se
abrigam na escuridão, protegidos pelo manto
da imunidade, posando de vítimas ao relampejar
dos holofotes da mídia. Enquanto aqui no
andar de baixo somos envenenados pelo cheiro
da podridão.
Frei Betto
O Globo, 09.02.2014
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário