quarta-feira, 5 de março de 2014

...porque é Carnaval (II)

Momento da verdade

  Mais um Carnaval, estamos aí, quer dizer, eu não estou com nada e em nada, muito menos nesse "aí" genérico e abstrato. Na verdade, se todos estão aí, eu prefiro estar ali --e vice-versa. O Carnaval não me repugna, como a tantos outros, mas não me deslumbra.
Já fiz esforço para gostar, apelei para complicadas razões --não deu. Do ponto de vista pessoal, guardo minhas lembranças, boas algumas, outras detestáveis, mas nenhuma que tenha entrado fundo e marcado um momento, definido uma emoção. Sim, houve um fato capital, que determinou tudo: foi num antigo baile aqui no Rio, num clube que atendia pelo nome de "High Life".
Eu havia saído do seminário há pouco e no primeiro Carnaval decidi não brincar. Embora usasse roupas leigas, eu ainda sentia o peso da batina sobre a minha carne, o cheiro do incenso em meus cabelos.
Passei o primeiro Carnaval numa praia, com minha mãe e irmãos, e da folia mesmo, só vi alguns blocos de sujo. Mas no terceiro ou quarto Carnaval, naquilo que lá no seminário a gente chamava de "mundo", topei o convite de uma namorada, fui parar no tal baile.
Por sinal, um baile famoso na época. Diziam que ali, de ano para ano, valia tudo e valia cada vez mais. No fundo, sabia não valer nada. Cometia séria concessão ao Carnaval indo a um baile, mas não entregava o ouro ao bandido: recusei qualquer tipo de fantasia. Meti-me numas calças brancas, camisa de seda branca.
No meio da folia, agarrado na namorada, deparei-me com enorme espelho, que ia do teto ao chão. E lá no espelho, vi um camarada com uma cara sórdida, olhos injetados de álcool e suor, repelente, medonho. Incomodado, quis tirar satisfação. Ele fez o mesmo. Descobri que ele era eu, eu era ele.
Culpa do espelho, do Carnaval e da má argila da qual são feitos homens, demônios e foliões. 

Carlos Heitor Cony - Folha, 02.03.2014

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