Esse texto do Cacá Diegues no Globo de hoje está ótimo. Segue na íntegra.
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Todo mundo sabe que a humanidade não é lá grande coisa. Aviltamos a
natureza que nos foi dada como berço e ambiente de vida, praticamos
guerras genocidas, mentimos e traímos, somos capazes de ignomínias em
relação aos outros, não vacilamos em deixá-los morrer afogados na fuga
da miséria ou em filas quilométricas na porta do Instituto de
Cardiologia, tanta coisa das quais devíamos nos envergonhar. A
humanidade não é mesmo grande coisa, mas é o que temos.
MARCELO
No afã soberbo de controlar o mundo, inventamos coisas que não existem
para contrapô-las como ciência à natureza, criações de nossas mentes
para nos impormos à natureza imprevisível, sujeita ao caos e ao acaso,
que não tem nenhum projeto para a humanidade. Inventamos, por exemplo, a
linha reta e o zero, em um mundo em que ambos não existem, onde só
existem curvas e nada está vazio. Um mundo em que não se pode prever
aonde chega o traçado de uma linha.
Se der alguma coisa errada na nossa ciência, botamos a culpa em algo que
não somos nós, como se o mundo real estivesse a nos boicotar. Joseph
Goebbels, o pensador nazista e ministro de Hitler, mandava que se
escolhesse um inimigo externo e se semeasse o ódio contra ele como
responsável por tudo que nos faltasse. Mesmo que erremos tanto, durante
tanto tempo, o inferno será sempre os outros.
Para evitar dúvidas e o debate que elas provocam, para impor nossa
verdade única cultivamos o julgamento dos extremos. Os seres, as obras e
as coisas só podem ser ótimos ou péssimos, os limites imobilizadores de
onde não há mais para onde se ir.
Entre um e outro, no universo real do mais ou menos, não reconhecemos
que algo possa existir. Não importa que seja injusto igualar o quase
ótimo ao quase péssimo. Travestis de Deus, só admitimos a perfeição de
um lado e o opróbrio do outro, quando a grandissíssima maioria de nossa
espécie navega, pra lá e pra cá, num oceano de tempestades e bonanças,
reino do humano mais ou menos.
Diversas e complexas bactérias controlam nosso corpo e nosso
cérebro, é com elas que nos entendemos. O mergulho que nos permitem dar
para dentro de nós mesmos nos cega para o resto do mundo.
Concentramo-nos em nós, tudo que inventamos é antropomórfico, parecido
com alguma coisa nossa e de nossas necessidades, muitas vezes
relacionadas ao amor. O que fazemos ao plugar um fio ereto na vagina de
uma tomada?
O amor não é apenas uma opção entre duas pessoas. Podemos nos dedicar ao amor por alguém, como podemos distribuí-lo por todos. O mundo não se divide entre hétero e homossexuais ou entre monogâmicos e poliafetivos, assim como não se divide entre louros e morenos ou altos e baixos. Existe uma infinidade de desejos que não são satisfeitos apenas com uma opção. A vontade é um exercício intelectual a que aderimos em nome de um projeto; mas o desejo é uma necessidade a que só os muito santos são capazes de resistir.
O amor de verdade é sereno e discreto, um aprendizado de vida, como um barco e suas circunstâncias a atravessar o rio do mundo. Ele aponta sempre para a solidariedade, um veículo de vida em que só se pode viajar acompanhado. O amor não é o fim da estrada, mas a estrada sem fim, a suportar o outro como ele é, na prática diária de um mundo mais ou menos. A Bíblia não deve ter sido bem traduzida — em vez de “amaivos uns aos outros”, o que Jesus deve ter dito foi “suportai-vos uns aos outros”.
Suportar significa também dar apoio. Sem arrogância, é possível ajudar os outros com nossa arte, apesar dos limites. Em carta ao pintor Candido Portinari, o escritor Graciliano Ramos, abordando as preocupações sociais de ambos os artistas, diz que “as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? (...) Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza. Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá”.
Sei da importância geral da economia e da política. Mas não tenho vontade de viver num mundo em que, todo dia de manhã, tenha que correr ao noticiário eletrônico para saber a quanto anda o dólar e qual a ação da vez. Ao PIB, prefiro um índice de felicidade qualquer, à altura do poema de Jorge Luis Borges: “Já sei que não serei feliz, mas isso talvez não tenha importância, há muitas outras coisas na vida”.
Cansei de ser pós-moderno, agora quero ser pós-eterno. As obras-primas ou as obras execráveis podem desaparecer, o mais ou menos é que nos ajuda a viver sem medo, perto dos outros. Quem sabe tomamos jeito?
O amor não é apenas uma opção entre duas pessoas. Podemos nos dedicar ao amor por alguém, como podemos distribuí-lo por todos. O mundo não se divide entre hétero e homossexuais ou entre monogâmicos e poliafetivos, assim como não se divide entre louros e morenos ou altos e baixos. Existe uma infinidade de desejos que não são satisfeitos apenas com uma opção. A vontade é um exercício intelectual a que aderimos em nome de um projeto; mas o desejo é uma necessidade a que só os muito santos são capazes de resistir.
O amor de verdade é sereno e discreto, um aprendizado de vida, como um barco e suas circunstâncias a atravessar o rio do mundo. Ele aponta sempre para a solidariedade, um veículo de vida em que só se pode viajar acompanhado. O amor não é o fim da estrada, mas a estrada sem fim, a suportar o outro como ele é, na prática diária de um mundo mais ou menos. A Bíblia não deve ter sido bem traduzida — em vez de “amaivos uns aos outros”, o que Jesus deve ter dito foi “suportai-vos uns aos outros”.
Suportar significa também dar apoio. Sem arrogância, é possível ajudar os outros com nossa arte, apesar dos limites. Em carta ao pintor Candido Portinari, o escritor Graciliano Ramos, abordando as preocupações sociais de ambos os artistas, diz que “as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? (...) Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza. Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá”.
Sei da importância geral da economia e da política. Mas não tenho vontade de viver num mundo em que, todo dia de manhã, tenha que correr ao noticiário eletrônico para saber a quanto anda o dólar e qual a ação da vez. Ao PIB, prefiro um índice de felicidade qualquer, à altura do poema de Jorge Luis Borges: “Já sei que não serei feliz, mas isso talvez não tenha importância, há muitas outras coisas na vida”.
Cansei de ser pós-moderno, agora quero ser pós-eterno. As obras-primas ou as obras execráveis podem desaparecer, o mais ou menos é que nos ajuda a viver sem medo, perto dos outros. Quem sabe tomamos jeito?
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