Belíssimo.
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Hoje é habitual usarmos uma
uniformização por baixo para nos referirmos à vida pública, aos serviços, ao
Estado, à juventude, aos palestinos e israelenses, a todos os cantos tristes do
mundo, ao terrorismo, à corrupção. Pensamos: “político é tudo igual” (ou “homem
é tudo igual”, ou — “mulheres!”), “não leem mais, só ficam nas redes”, “essa
guerra nunca terá fim”, “os homens são naturalmente violentos, e às vezes
enlouquecem”, “existe corrupção desde que existe homem”. É uma espécie de
cinismo pós-moderno. Nada a fazer, vamos às compras. — Não restam sonhos? Sim,
há alguns à venda. — A esses desiludidos do mundo e da vida vale a pena contar
a história de Jacó e o Anjo.
Imaginem se Francisco não tivesse
sabido ouvir a voz de Deus na igrejinha de São Damião. Se pensasse: “Que
igrejinha bonita, toda derreada, esse povo não cuida mesmo das coisas...”, e
tivesse ido adiante sem entender que Alguém o chamava. Ser santo dá trabalho.
Não vem de graça. Vem da Graça. É preciso merecê-la. Vida difícil. Bastaria
pensar que nada tem jeito, esse mundo é mesmo uma perdição, esperemos o Reino
de Deus, depois da morte — e não haveria santos. E para alguns fariam falta.
São luzes. Às vezes fica escuro. E eles encantam o ar trevoso. Pequeninos
faróis. Anda escuro agora em muitas partes do mundo. Santos são requeridos. Mas
nosso espírito cínico olha com desconfiança desdenhosa os que andam na
contramão do tempo carregando nos olhos fiapos de transcendência. Estão fora do
mercado. Não são nada práticos. Sonham. Assim se diz. A quem diz assim valeria
a pena contar a história de Jacó e o Anjo.
Jacó era o filho mais moço de
Isaac, filho de Abraão, pai da nossa história. (Pelo lado judaico. Convém não
esquecermos os gregos.) Numa negociação da qual certamente não se orgulhou,
levou do seu irmão Esaú a primogenitura. E a primogenitura era tudo. Isaac, já
quase cego, apalpou o braço do filho mais moço, reconheceu nele os pelos
abundantes de Esaú e deu a bênção ao caçula. E Jacó virou patriarca. Não é,
certamente, uma história edificante. Fala das fraquezas humanas, da corrupção
ativa e passiva (Esaú vendeu-se por um prato de lentilhas...), do desamor entre
irmãos. Da vontade de poder e riquezas. Sim. Mas Jacó lutou com o Anjo. E tudo
mudou. O mundo mudou. A História mudou. E nós estamos aqui. Não descendemos da
tramoia. Descendemos da luta.
Jacó trabalhara anos para Labão,
um homem rico de plantações e gado. Queria, ao fim dos cansaços, sua filha
Raquel. Labão lhe deu Lia. E Jacó, teimoso, trabalhou mais (sete anos, diz
Camões, e deve ser verdade). E obteve Raquel. Raquel e Lia. E ficou rico. Labão
dizia: “Todos os novilhos que nascerem malhados serão teu salário” — e o Deus
de Abraão e Isaac mandava todos os novilhos malhados. E assim foi, até que
começaram a olhá-lo com desconfiança e ele considerou mais prudente fugir.
Tomou Raquel e Lia, e suas escravas, e tudo que era seu, e procurou a outra
margem do rio Jaboc, onde estaria livre da perseguição dos filhos e genros de
Labão, que vinham nos seus calcanhares. Atravessou as mulheres, o gado e o mais
que levava de precioso. E preparou-se para passar ele também. Do outro lado
ficava a liberdade. — Até aqui tudo exasperantemente rasteiro. Briga de
família, riquezas e bens. A mesma humanidade de hoje. O mundo não envelhece,
repete-se. — Mas não. Porque Deus quis pôr Jacó à prova, e tudo mudou.
A noite ia caindo, Jacó já
alcançava o rio e de súbito Alguém se interpôs entre o homem e a liberdade. E
exigiu luta. Jacó intuiu que não podia vencer. Mas do outro lado estavam a
liberdade e uma vida nova. Não tinha escolha. Contra todas as evidências,
lutou. A noite inteira. Tudo que estava em jogo lhe deu forças desmesuradas, e
por toda uma noite os dois ficaram ligados no abraço guerreiro, imóveis de
tanta equipotência. A luta impossível se travou. Ninguém venceu. Chegada a
manhã, Esse que desafiara o mortal lhe disse: “Lutaste bem, podes passar”. E
Jacó: “Não sem saber o nome daquele que me deu combate”. E Ele: “Meu nome tu
não compreenderias. Mas digo o teu. Doravante te chamarás Isra-El, o que lutou
com Deus.” E Jacó, Israel, passou.
Aqueles que vivem da descrença no
mundo e do feroz desgosto da vida, e já se esqueceram da graça que é sonhar —
esses um dia poderiam ser surpreendidos pelo Anjo. Seria assim. Iriam de noite
anestesiados de desnorteamento e de repente o Anjo estaria lá. Caminho
bloqueado. Ou a luta ou o aniquilamento na tristeza. Os que decidissem lutar
descobririam que são as batalhas impossíveis as que valem a pena. As outras são
apenas cálculo. E aí, passando ou não, teriam vencido. Os outros... Para os
outros é preciso pensar outra história. A de Jacó e o Anjo não dá conta da
renúncia triste.
Mas haverá outra, com certeza.
Márcio Tavares D'Amaral - O Globo, 05.12.2015
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