segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Jacó e o Anjo (I)



Belíssimo.

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Hoje é habitual usarmos uma uniformização por baixo para nos referirmos à vida pública, aos serviços, ao Estado, à juventude, aos palestinos e israelenses, a todos os cantos tristes do mundo, ao terrorismo, à corrupção. Pensamos: “político é tudo igual” (ou “homem é tudo igual”, ou — “mulheres!”), “não leem mais, só ficam nas redes”, “essa guerra nunca terá fim”, “os homens são naturalmente violentos, e às vezes enlouquecem”, “existe corrupção desde que existe homem”. É uma espécie de cinismo pós-moderno. Nada a fazer, vamos às compras. — Não restam sonhos? Sim, há alguns à venda. — A esses desiludidos do mundo e da vida vale a pena contar a história de Jacó e o Anjo.

Imaginem se Francisco não tivesse sabido ouvir a voz de Deus na igrejinha de São Damião. Se pensasse: “Que igrejinha bonita, toda derreada, esse povo não cuida mesmo das coisas...”, e tivesse ido adiante sem entender que Alguém o chamava. Ser santo dá trabalho. Não vem de graça. Vem da Graça. É preciso merecê-la. Vida difícil. Bastaria pensar que nada tem jeito, esse mundo é mesmo uma perdição, esperemos o Reino de Deus, depois da morte — e não haveria santos. E para alguns fariam falta. São luzes. Às vezes fica escuro. E eles encantam o ar trevoso. Pequeninos faróis. Anda escuro agora em muitas partes do mundo. Santos são requeridos. Mas nosso espírito cínico olha com desconfiança desdenhosa os que andam na contramão do tempo carregando nos olhos fiapos de transcendência. Estão fora do mercado. Não são nada práticos. Sonham. Assim se diz. A quem diz assim valeria a pena contar a história de Jacó e o Anjo.

Jacó era o filho mais moço de Isaac, filho de Abraão, pai da nossa história. (Pelo lado judaico. Convém não esquecermos os gregos.) Numa negociação da qual certamente não se orgulhou, levou do seu irmão Esaú a primogenitura. E a primogenitura era tudo. Isaac, já quase cego, apalpou o braço do filho mais moço, reconheceu nele os pelos abundantes de Esaú e deu a bênção ao caçula. E Jacó virou patriarca. Não é, certamente, uma história edificante. Fala das fraquezas humanas, da corrupção ativa e passiva (Esaú vendeu-se por um prato de lentilhas...), do desamor entre irmãos. Da vontade de poder e riquezas. Sim. Mas Jacó lutou com o Anjo. E tudo mudou. O mundo mudou. A História mudou. E nós estamos aqui. Não descendemos da tramoia. Descendemos da luta.

Jacó trabalhara anos para Labão, um homem rico de plantações e gado. Queria, ao fim dos cansaços, sua filha Raquel. Labão lhe deu Lia. E Jacó, teimoso, trabalhou mais (sete anos, diz Camões, e deve ser verdade). E obteve Raquel. Raquel e Lia. E ficou rico. Labão dizia: “Todos os novilhos que nascerem malhados serão teu salário” — e o Deus de Abraão e Isaac mandava todos os novilhos malhados. E assim foi, até que começaram a olhá-lo com desconfiança e ele considerou mais prudente fugir. Tomou Raquel e Lia, e suas escravas, e tudo que era seu, e procurou a outra margem do rio Jaboc, onde estaria livre da perseguição dos filhos e genros de Labão, que vinham nos seus calcanhares. Atravessou as mulheres, o gado e o mais que levava de precioso. E preparou-se para passar ele também. Do outro lado ficava a liberdade. — Até aqui tudo exasperantemente rasteiro. Briga de família, riquezas e bens. A mesma humanidade de hoje. O mundo não envelhece, repete-se. — Mas não. Porque Deus quis pôr Jacó à prova, e tudo mudou.

A noite ia caindo, Jacó já alcançava o rio e de súbito Alguém se interpôs entre o homem e a liberdade. E exigiu luta. Jacó intuiu que não podia vencer. Mas do outro lado estavam a liberdade e uma vida nova. Não tinha escolha. Contra todas as evidências, lutou. A noite inteira. Tudo que estava em jogo lhe deu forças desmesuradas, e por toda uma noite os dois ficaram ligados no abraço guerreiro, imóveis de tanta equipotência. A luta impossível se travou. Ninguém venceu. Chegada a manhã, Esse que desafiara o mortal lhe disse: “Lutaste bem, podes passar”. E Jacó: “Não sem saber o nome daquele que me deu combate”. E Ele: “Meu nome tu não compreenderias. Mas digo o teu. Doravante te chamarás Isra-El, o que lutou com Deus.” E Jacó, Israel, passou.

Aqueles que vivem da descrença no mundo e do feroz desgosto da vida, e já se esqueceram da graça que é sonhar — esses um dia poderiam ser surpreendidos pelo Anjo. Seria assim. Iriam de noite anestesiados de desnorteamento e de repente o Anjo estaria lá. Caminho bloqueado. Ou a luta ou o aniquilamento na tristeza. Os que decidissem lutar descobririam que são as batalhas impossíveis as que valem a pena. As outras são apenas cálculo. E aí, passando ou não, teriam vencido. Os outros... Para os outros é preciso pensar outra história. A de Jacó e o Anjo não dá conta da renúncia triste.

Mas haverá outra, com certeza.

Márcio Tavares D'Amaral - O Globo, 05.12.2015

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