O Anjo pode não ser visto. É esquivo e noturno. Quando não
se mostra é necessária muita agudeza amorosa para vê-lo. E já nos vai faltando
agudeza, daquela que penetra o escondido. E amor. Também nos vai faltando o
amor. Nas nossas sociedades, em que o consumo reina, inclusive o de pessoas, em
que a eficácia impera, e a busca por sentido escasseia, em que uma exclusão
estrutural expulsa quatro bilhões de pessoas do mundo, da vida e do tempo — nas
nossas sociedades pós-modernas é tão difícil reconhecermos o Próximo! E o Anjo
é o mais próximo. Se não o reconhecemos não o enfrentamos. E a vida fica banal,
sem sobressaltos. E triste. Inventamos avatares de Deus. Ele habita as redes,
vira meme. Frequenta jogos. Onde houver jogos complexos, que exigem decifrações
e altas estratégias, aqueles em que os desenvolvedores, os jogadores e os
personagens podem se confundir, há uma função-deus em jogo. No jogo. Alguém
comanda. Há destino. As escolhas de caminhos fazem vidas diferentes e atraem
perigos e recompensas. Há bem e mal. Mas ninguém se importa. O deus do jogo não
é um próximo. É da máquina. Deus-software. Não tem transcendência. Gera
efeitos, mas, fora isso, não faz Sentido.
Também nas guerras, que já se parecem com jogos, há uma
função-deus. Elas cada vez mais se fazem em seu nome. Planetariamente. Como se,
sobretudo em certos cantos tristes do mundo, precisassem de um Absoluto, para
ganharem sentido para quem vai morrer. Ou matar. Não fossem só conflitos de
interesses mortais. Precisam se dar em espetáculo. Se não forem vistas em
largas cadeias não serão consumidas. E uma guerra não consumida em imagens é
como se não tivesse acontecido, circunscrita ao seu pequeno território real. O
próximo, nessas guerras, é o espectador. É nele que a guerra ganha sentido. E o
pobre Deus dá seu Nome.
É a expectativa do Próximo verdadeiro, não máquina, não
espetáculo, que abre o caminho noturno do Anjo. Sem Próximo o mundo fica com
uma só dimensão. Sem relevo, sem diferenças verdadeiras. E o Anjo deixa cair
suas asas tristes. O Próximo habita a diferença.
Conta-se que, na antiga Judeia, um homem, ferido num assalto
perto de Jericó, agonizava à beira da estrada. Passou um doutor da Lei, tinha pressa,
não prestou atenção ao ferido, tão perto dos seus olhos. Outras coisas eram
mais importantes do que a vida ou morte de alguém que ele nem conhecia. Passou
um comerciante. Tinha pressa. Os mercados iam fechar, não havia tempo a perder
com um desconhecido fora do mercado. E passou um samaritano. Os habitantes da
Samaria eram em geral desprezados como inferiores. Esse parou. Desceu do
cavalo, cuidou das feridas, levou o homem a uma estalagem, pagou pelo tempo em
que cuidariam dele até que pudesse voltar. Não o conhecia. Mas o reconheceu.
Ele era o Próximo, o estranho. O homem ferido soube também que aquele era o seu
próximo. Próximos, um para o outro. É como, fortuitamente, acontece o amor. Uma
transcendência cuidadosa.
Há hoje, no mundo desencantado, um desgosto pela
transcendência. Parece logo coisa religiosa, e há quem não goste de religião.
Entende-se: elas têm dado péssimos exemplos de desamorosidade. Parece também um
conceito velho. Ideia da Bíblia, do Corão, dos teólogos. E Deus sabe que há teólogos
sem amor! Parece, não sei... uma coisa que não tem mercado. Quem quereria
consumir transcendência? Transcendência não vende. No entanto, cada vez que uma
pessoa fica aturdida com um acontecimento e se pergunta: “Mas qual é o sentido
disso??” — a transcendência entrou na sua vida. Houve o reconhecimento de que o
apenas dado não explica os momentos mais importantes, de choque ou graça. Há um
sentido que escapa. Há um Sentido, que escapa. E que faz falta. A pessoa a quem
ocorreu o inesperado precisa dele. Ela o quer. É assim mesmo: a transcendência
não precisa ser nada de complicado, em que se deva crer. Basta querer. Sentir
sua falta. Perguntar, fazer questão. E aí, quando ela é convocada, a vida fica
com mais de uma dimensão, e o Próximo pode aparecer. E o amor, que precisa de
um próximo, pode se lembrar de si. E a esperança, que necessita de um próximo,
uma próxima — vida, mundo, futuro —, sem alarde se desvela. A vida, anêmica de
tanto consumo entediado, recupera cores, é capaz de sorrir.
Marcio Tavares D'Amaral - O Globo, 12.12.2015
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