domingo, 15 de setembro de 2013

Vamos tirar a máscara

Sábado passado, quando o sol
generoso deste fim de inverno
carioca iluminou a cidade, troquei
o almoço por um mergulho
na praia e me deparei com rapazes e
moças jogando altinho na beira do mar.
Os jovens eram os donos daquela faixa
de areia dura, a equilibrar nos pés a
bola que jogavam um para o outro sem
deixá-la cair. Nenhum banhista ousava
passar pela barreira do jogo, mesmo
sabendo que o altinho só está liberado
na areia mole, perto do calçadão e depois
de certa hora da tarde.
Embora ninguém arriscasse reclamar,
estávamos todos conscientes de
que seria difícil passar impune pelos
craques. Até que um menino pequeno
levou distraído uma bolada na cabeça
e correu chorando para seus
pais. Nem assim os boleiros interromperam
o jogo proibido.
Imaginei que aqueles rapazes e moças
a jogar altinho fossem os mesmos
que à noite, saindo das baladas a que
têm direito, usam seus aplicativos em
celulares para descobrir onde se encontram
os postos da Lei Seca. Os
mesmos que, eventualmente apanhados
ao volante alcoolizados, não
hesitariam em oferecer propina ao
policial do flagrante.
Muitos deles deviam ser também
parte dos que foram às formidáveis
passeatas que começaram em junho,
para manifestar seus justos protestos
contra a corrupção dos políticos e a
violência da polícia. Alguns devem
ter protestado contra o voto secreto
no Congresso, com seus rostos escondidos
por máscaras a fim de garantir
anonimato.
Violência e corrupção só podem ser
combatidas com um compromisso comum
de toda a sociedade, sem direito
a exceções. É claro que ganhar comissão
de empreiteira em obra pública é
bem mais grave do que jogar altinho
em local proibido. Mas os dois malfeitos
ilustram uma mesma cultura, segundo
a qual vale tudo que nos favoreça,
ainda que em prejuízo dos outros.
Assim como os políticos se surpreendem
indignados por estarem
sendo acusados de usar bens e verbas
públicos para seus interesses pessoais,
os jovens do altinho se ofenderiam
com quem lhes sugerisse interromper
o jogo proibido. Tanto uns
quanto outros reagem como se estivessem
sendo inibidos na prática de
um direito natural deles, o de ocupar
o espaço público em benefício de
seus desejos.
Para nós brasileiros, “brasileiro” é
sempre o outro, o otário que se deixa
frustrar por obstáculos que são impostos
ao exercício de sua vontade. E
não sentimos culpa de nada, pois as
leis são feitas para os outros e não para
nós. Só cidadãos de segunda classe
se submetem a elas, se inibem diante
delas por falta de poder ou por falta
de malandragem.
Sentimo-nos injustiçados, como
se os outros estivessem se metendo
em nossas vidas privadas, quando
reclamam do sinal vermelho que
acabamos de atravessar, do lixo que
jogamos nas ruas, da música alta
que não deixa nosso vizinho dormir.
O outro é uma figura de retórica,
não reconhecemos sua existência,
como se habitássemos um vazio
em que a multidão à nossa volta
fosse invisível. Não existe pecado
quando se está sozinho no mundo.
O povo também era invisível para
os aristocratas da corte francesa do
século 18 que viviam às custas dos
impostos pagos pela plebe e dos privilégios
que os reis lhes concediam.
Eles bailavam isolados no luxo de
Versalhes, a muitos quilômetros da
Paris fedorenta e faminta que garantia
sua existência. Como exemplo a
todos, Brasília é a nossa Versalhes republicana,
lá está a nobreza secular
de nossa vida pública, a bailar ausente
do que se passa no resto do país, se
sentindo injustiçada se algum ingrato
reclama do uso indevido do que não é
deles. Da Praça dos Três Poderes, não
se vê a Bastilha cair.
Esse é o exemplo com o qual se
identificam os rapazes e moças do
altinho, com suas máscaras do baile
social. Só um pacto sincero entre todos
os níveis da sociedade, decidida
a cumprir as regras estabelecidas
para a convivência entre seus membros,
poderá acabar com as distorções
que tanto combatemos nas manifestações
de rua.

Cacá Diegues - O Globo, 07.09.2013

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