segunda-feira, 21 de abril de 2014

Um herói bem brasileiro

Joaquim José da Silva Xavier é um daqueles heróis que "colaram" na memória popular.
Enforcado aos 21 de Abril de 1792, foi entronizado no panteão nacional pela República e muito especialmente cultuado sob a última ditadura que vivemos, entre 1964 e 1985. O fato de ter sido um militar de tropa paga, com patente de alferes (leia-se, subtenente), certamente tem a ver com essa entronização e a exacerbação das celebrações em sua homenagem.
Talvez sua naturalidade mineira tenha colaborado para reforçar esse processo de mitificação, que poderia ter alcançado personagens militares de outros movimentos do passado colonial de maior enraizamento social e impacto político, como foram a Conspiração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798, e a Revolução Pernambucana, de 1817.  Arrisco a conjecturar, portanto, que a celebração do alferes Tiradentes exprime a importância que Minas Gerais teve e tem na vida política nacional  - e, alto lá, aqui quem escreve é um paulista, com muito orgulho.
A importância de Minas, porém, é insuficiente para o fato de Tiradentes ser um "herói" verdadeiramente popular. Explicaria apenas o empenho das elites em celebrá-lo, mas não o da população em geral.
O entendimento dessa popularidade certamente tem a ver com o perfil, as contradições e a trajetória do próprio personagem. Ele, como já demonstrou Kenneth Maxwell, esteve longe de ser o líder da Conspiração Mineira de 1788-89, ou um pobretão em meio à gente bem posicionada socialmente.
Tiradentes tinha fortuna equiparável ao do magistrado Tomás Antônio Gonzaga e pertencia a uma família importante da região do Vale do Rio das Mortes. Jamais se colocou a favor da abolição da escravidão, como bradam algumas lideranças políticas mineiras e magistrados pátrios da atualidade, para escárnio dos historiadores e frenesi nos embates políticos.
Todavia, foi o maior ativista do movimento e aquele que o levou da esfera privada, das reuniões secretas, para o espaço público, corporificado nos caminhos, nas tavernas, nas casas das meretrizes etc.
Um tipo meio fanfarrão, é certo. Mas, ao mesmo tempo, um personagem capaz de juntar, no discurso político, a consciência de ser um homem de origem europeia nascido na América (como se diria à época, um "mazombo"), propugnando o direito e a capacidade de gente como ele participar do governo, à denúncia da espoliação colonial materializada no monopólio comercial metropolitano e no arrocho tributário.
Foi igualmente hábil e lúcido para misturar textos e autores diferentes, indo do padre Antônio Vieira - um jesuíta, o maior orador sacro que já passou pelo púlpito cristão - ao abade Raynal, grande filósofo das luzes, passando ainda por um livro que continha leis do nascente Estados Unidos da América.
Boquirroto, arguto, mediador cultural, Tiradentes conseguia ainda cultivar amizades entre homens marcados por ressentimentos mútuos, como o padre José da Silva Rolim (contrabandista, comerciante de escravos, concubinário e valentão) e o contratador de impostos Joaquim Silvério dos Reis (o traidor, nosso "Judas"!).
Foi capaz, ademais, de superar ele mesmo inimizades, como aquela que norteava sua relação com Tomás Antônio Gonzaga. Teve a hombridade de não incriminar seus companheiros de infortúnio quando os conspiradores foram presos.
Morreu, por fim, como um mártir. D. Maria I, que o condenou à forca e ao esquartejamento, num julgamento de cartas marcadas, procurou representar a si mesma como Maria Santíssima, na medida em que comutou a pena de morte para todos os outros condenados.
Tiradentes, por sua vez, morreu resignado, traído e supliciado, em grande paralelo com Jesus Cristo. Figura melhor para cair no gosto popular não haveria! Um autêntico brasileiro avant-la-lettre. Traduzindo, antes que houvesse uma identidade brasileira constituída e oposta à lusitana, ele trazia os "cacos" que seriam juntados ao longo dos séculos 19 e 20 e que fazem parte do que entendemos como o "ser nacional".
Celebremos, portanto, o Tiradentes. E sempre nos lembremos que, como muitos de nós, ele "carregou algo na cabeça". Isto é, foi corno, ao mesmo tempo em que prometia pagamento às prostitutas para depois da Revolução.  Quer melhor brasileiro do que este, justamente alguém que, como nós mesmos, merece ser alvo de nossas próprias piadas?

LUIZ CARLOS VILLALTA
51 anos, é professor associado do Departamento de História da FAFICH-UFMG. Graduado, mestre e doutor em História pela USP, pesquisa sobre História do Brasil Colonial e História de Portugal na Época Moderna
UOL, 21.04.2014

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