Joaquim José da Silva Xavier é um daqueles heróis que
"colaram" na memória popular.
Enforcado aos 21 de Abril de 1792, foi entronizado no
panteão nacional pela República e muito especialmente cultuado sob a última
ditadura que vivemos, entre 1964 e 1985. O fato de ter sido um militar de tropa
paga, com patente de alferes (leia-se, subtenente), certamente tem a ver com
essa entronização e a exacerbação das celebrações em sua homenagem.
Talvez sua naturalidade mineira tenha colaborado para
reforçar esse processo de mitificação, que poderia ter alcançado personagens
militares de outros movimentos do passado colonial de maior enraizamento social
e impacto político, como foram a Conspiração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798,
e a Revolução Pernambucana, de 1817.
Arrisco a conjecturar, portanto, que a celebração do alferes Tiradentes
exprime a importância que Minas Gerais teve e tem na vida política
nacional - e, alto lá, aqui quem escreve
é um paulista, com muito orgulho.
A importância de Minas, porém, é insuficiente para o fato de
Tiradentes ser um "herói" verdadeiramente popular. Explicaria apenas
o empenho das elites em celebrá-lo, mas não o da população em geral.
O entendimento dessa popularidade certamente tem a ver com o
perfil, as contradições e a trajetória do próprio personagem. Ele, como já
demonstrou Kenneth Maxwell, esteve longe de ser o líder da Conspiração Mineira
de 1788-89, ou um pobretão em meio à gente bem posicionada socialmente.
Tiradentes tinha fortuna equiparável ao do magistrado Tomás
Antônio Gonzaga e pertencia a uma família importante da região do Vale do Rio
das Mortes. Jamais se colocou a favor da abolição da escravidão, como bradam
algumas lideranças políticas mineiras e magistrados pátrios da atualidade, para
escárnio dos historiadores e frenesi nos embates políticos.
Todavia, foi o maior ativista do movimento e aquele que o
levou da esfera privada, das reuniões secretas, para o espaço público,
corporificado nos caminhos, nas tavernas, nas casas das meretrizes etc.
Um tipo meio fanfarrão, é certo. Mas, ao mesmo tempo, um
personagem capaz de juntar, no discurso político, a consciência de ser um homem
de origem europeia nascido na América (como se diria à época, um
"mazombo"), propugnando o direito e a capacidade de gente como ele
participar do governo, à denúncia da espoliação colonial materializada no
monopólio comercial metropolitano e no arrocho tributário.
Foi igualmente hábil e lúcido para misturar textos e autores
diferentes, indo do padre Antônio Vieira - um jesuíta, o maior orador sacro que
já passou pelo púlpito cristão - ao abade Raynal, grande filósofo das luzes, passando
ainda por um livro que continha leis do nascente Estados Unidos da América.
Boquirroto, arguto, mediador cultural, Tiradentes conseguia
ainda cultivar amizades entre homens marcados por ressentimentos mútuos, como o
padre José da Silva Rolim (contrabandista, comerciante de escravos,
concubinário e valentão) e o contratador de impostos Joaquim Silvério dos Reis
(o traidor, nosso "Judas"!).
Foi capaz, ademais, de superar ele mesmo inimizades, como
aquela que norteava sua relação com Tomás Antônio Gonzaga. Teve a hombridade de
não incriminar seus companheiros de infortúnio quando os conspiradores foram
presos.
Morreu, por fim, como um mártir. D. Maria I, que o condenou
à forca e ao esquartejamento, num julgamento de cartas marcadas, procurou
representar a si mesma como Maria Santíssima, na medida em que comutou a pena
de morte para todos os outros condenados.
Tiradentes, por sua vez, morreu resignado, traído e
supliciado, em grande paralelo com Jesus Cristo. Figura melhor para cair no
gosto popular não haveria! Um autêntico brasileiro avant-la-lettre. Traduzindo,
antes que houvesse uma identidade brasileira constituída e oposta à lusitana,
ele trazia os "cacos" que seriam juntados ao longo dos séculos 19 e
20 e que fazem parte do que entendemos como o "ser nacional".
Celebremos, portanto, o Tiradentes. E sempre nos lembremos
que, como muitos de nós, ele "carregou algo na cabeça". Isto é, foi
corno, ao mesmo tempo em que prometia pagamento às prostitutas para depois da
Revolução. Quer melhor brasileiro do que
este, justamente alguém que, como nós mesmos, merece ser alvo de nossas
próprias piadas?
LUIZ CARLOS VILLALTA
51 anos, é professor associado do Departamento de História
da FAFICH-UFMG. Graduado, mestre e doutor em História pela USP, pesquisa sobre
História do Brasil Colonial e História de Portugal na Época Moderna
UOL, 21.04.2014
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