Ela teve coragem para escrever o primeiro artigo. Considero-o ótimo. É de uma cabeça arejada. Contempla com propriedade os passes e impasses da relação homem x mulher sem camisas de força e aprioris que as feministas adoram colocar e que não existem em qualquer relação.
É seu ponto de vista; é quase o meu. É o ponto de vista de uma mulher branca de classe média, ela escreveu seu segundo artigo, onde se rendeu ao linchamento. Afinal, é o que ela é. As feministas queriam que fosse o seu. Não foi, então é delito de opinião. E partiram para o massacre. Logo elas, tão oprimidas pelos machos. Oprimiram Fernandinha e oprimem quem ousa delas discordar. O episódio mostra como a humanidade transcende o gênero; antes de homens ou mulheres somos humanos, com toda a miséria associada, não importando se vestimos calcinha ou cueca. O discurso de gênero, dos auto-intitulados setores avançados da sociedade quando vocalizado por representantes das classes média alta e alta, é uma das pautas mais regressivas da contemporaneidade; um capítulo da grande narrativa em que se insere o politicamente correto. Tem muito muderno faturando tanto pecuniariamente quanto culturalmente com o tema.
O texto antes do linchamento:
No presente, a mulher ainda apanha, ganha menos do que o homem e fechou um contrato social impossível de ser cumprido, já que cabe a ela não só cuidar da prole, do lar, se manter jovem e desejada, como também trabalhar para contribuir para o sustento da casa. Sobra tempo nenhum para dormir e, muito menos, sonhar com alguma realização que vá além dos deveres do dia.
Nas camadas mais desassistidas, o fim do casamento indissolúvel produziu milhares de lares sem pai, onde a avó e a mãe servem de esteio para a estrutura familiar. Na falta de creches, de escolas, do estado para ampará-las, a tarefa de criar rapazes que não repitam a violência e o abandono dos pais e meninas que deem um basta na escravidão das mães, é uma missão que beira o inatingível.
A maternidade interfere na vida da mulher de uma forma mais arraigada do que a paternidade na do homem. Temos um relógio biológico certeiro, que coincide com nosso período produtivo, interferindo nas decisões profissionais e pessoais. A fragilidade no emprego, a dependência dos cônjuges, a falta de liberdade de ir e vir passa pela incapacidade do feminino de se desapegar das crias. Um homem, seja ele pobre, rico, preto ou branco, baixo, alto, feio ou bonito, dorme quando está cansado, sai quando deseja e dá prioridade à própria agenda, sem nenhuma pressão que não a da vontade.
Algumas correntes defendem que essa diferença é cultural, mas eu acho que é biológica, carnal, imemorial.
Sou pela licença paternidade. É um passo e tanto para que o casal, unido, divida a responsabilidade dos primeiros meses exaustivos de um bebê. Sou favorável a que toda fábrica tenha uma creche e tenho gratidão pelas babás que me criaram e que criaram meus filhos, cumprindo a função da mãe social, que nos tempos da vovó menina era feito pelas tias, primas, avós e irmãs da casa.
Invejo o companheirismo dos homens, o prazer que eles sentem de estarem juntos e se divertirem com qualquer bobagem. Homem gosta muito de estar com homem. Não me incomoda o machismo, confesso, talvez seja uma nostalgia de infância que carrego. A geração que me criou era formada por machões gloriosos, de Millôr a Miéle, irresistíveis até nos seus preconceitos.
Um editor alemão recusou publicar meu livro, Fim, dizendo que era machista. Explicaram que a obra havia sido escrita por uma mulher e ele disse que não importava, que era machista do mesmo jeito e não iria pegar bem na Alemanha. Está certo o editor, eu sou latina, não consigo entrar numa sauna com todo mundo pelado e me manter isenta.
Os estupros da passagem de ano na mesma Alemanha advogam em favor do editor avesso ao machismo. A violência contra a mulher é menor em lugares onde a igualdade entre os sexos é melhor resolvida. Nos países muçulmanos que visitei, Marrocos, Egito, Malásia, sempre me incomodou o olhar guloso, reprimido e repressor dos homens.
O Brasil está entre um e outro.
Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar.
Estou certa de que essa é a minha primeira encarnação como mulher.
Apesar do talento para ser mãe, sou menos feminina do que gostaria de ser. Já beirando a idade em que nos tornamos invisíveis ao peão da obra da esquina, rejeito as campanhas anti fiu fiu e considero o flerte um estado de graça a ser preservado. É claro que um chefe que mantém uma subalterna sob pressão constante merece retaliação, mas uma vida de indiferença, onde todo mundo é neutro, não falo igual, digo neutro, sem xoxota, sem peito, sem pau, bigode, ah… é uma desgraça.
Tenho admiração pelas mulheres livres, que não conhecem o medo e são plenas na sua feminilidade. Certa feita, um mulherão me explicou que terminou um casamento sem brigas e sem sofrimento porque o marido ficou homem demais. Na casa dela, pontuou a morena, só havia lugar para um homem, e esse homem era ela.
Nunca fui mulher o suficiente para chegar a ser homem.
A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo. Fora as questões práticas e sociais, muitas vezes, a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser.
Um homem fêmea.
O Mea Culpa, na realidade A Capitulação.
Venho aqui pedir desculpas pelo artigo Mulher que publiquei no Blog Agora É Que São Elas, daFolha. Jamais pensei que ele seria uma afronta tão profunda a nós mulheres. Não o teria escrito se achasse que era esse o caso.
Venho aqui pedir desculpas pelo artigo Mulher que publiquei no Blog Agora É Que São Elas, daFolha. Jamais pensei que ele seria uma afronta tão profunda a nós mulheres. Não o teria escrito se achasse que era esse o caso.
As críticas procedem, quando dizem que eu escrevi do ponto de vista de uma mulher branca de classe média. É o que sou.
Minha mãe sempre trabalhou, teve um casamento que nunca cerceou o seu direito profissional, eu cresci num ambiente de extrema liberdade, conquistada, diga-se, com a ajuda de movimentos feministas anteriores a mim. Era uma época de um machismo muito arraigado, do qual guardo heranças, mas que, lamentavelmente, ainda à época não estava identificado de forma direta com o estupro e a violência.
Entendi com as respostas ao meu artigo que, hoje, os movimentos feministas lutam para que essa associação seja clara. Inclusive no que se refere ao direito de ir e vir sem assédio.
Esperava-se de uma voz feminina que tem um espaço para se posicionar, uma opinião menos alienada e classista diante da luta pelo fim de tanta desigualdade e sofrimento que as mulheres enfrentaram e enfrentam pelos séculos.
Refleti durante toda semana e o que me cabe são profundas desculpas. Procurarei estar atenta e comprometida com essas reinvindicações.
Entendi que existe uma discussão maior, que vai da cidadania ao direito ao próprio corpo, e, acima de tudo, uma luta pela erradicação da violência contra a mulher num país já tão violento, discussão essa que não comporta meios termos.
Sou contra o estupro, a violência, o baixo salário, o racismo, e reafirmo a importância dos movimentos que lutam pela melhoria das condições de vida da mulher e das minorias no Brasil.
Sou mulher e não gostaria de ser vista como inimiga desses movimentos, e nem de vê-los como tal, porque isso não corresponde à realidade do meu sentir.
Toda vontade de mudança parte do indivíduo, é o que estou fazendo aqui. Sem a coletividade é impossível avançar.
Prometo estar atenta. Perdão por ter abordado o assunto a partir da minha experiência pessoal que, de certo, é de exceção.
Mea culpa.
Fernanda Torres - #Agora é que são elas - blog ancorado na UOL
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