segunda-feira, 4 de abril de 2016

A filosofia, modéstia a parte...

Posso ter perdido muitas oportunidades na minha adolescência e juventude, passadas entre quatro paredes de um seminário mas alguns bons hábitos e virtudes foram conquistados nesse período. Aprendi a amar a filosofia que me foi apresentada a partir da matriz do pensamento ocidental: o pensamento grego. Com a filosofia aprendi que o buraco é sempre mais embaixo e que as aparências enganam. Quem diria... o principezinho de Saint-Éxupery, do qual gosto muito, tinha razão. Na época os intelectuais tinham uma atitude  blasé frente a livro e autor; o primeiro, por incrível que pareça, era o preferido das candidatas a miss qualquer coisa. Naquele tempo, elas liam o Pequeno Príncipe ! Vai ver era essa a causa da má vontade dos intelectuais  com Saint-Éxupery. Mas, voltando à filosofia...
Alí aprendi também a  me resguardar dos sofistas que possuem uma maneira de ver o mundo muito simpática aos filósofos da moda (Nietzsche, p. ex., que não gostava dos filósofos Platão e Aristóteles e  menos aínda de Sócrates)  e que inspiram a maneira de pensar e atuar da maior parte de advogados, marqueteiros e políticos atuais. Sofismas e sofistas a mim soam como palavrão.

 As Estratégias do Bolo


No século IV a. C. os gregos começaram a perder a medida das marés, do mar que sobe e faz sumir a praia, do mar que foge quando a praia vem. As marés do mundo, não os conceitos na cabeça e as palavras na boca. Essa foi a mais antiga, e mais bela, experiência da verdade. E do que são o mundo e a vida. Nós a perdemos de vista. Vieram os sofistas no século V, disseram que tudo era caos, nada podia ser conhecido, sobrava só a linguagem para convencer os ignorantes. A linguagem, o poder. Os filósofos do IV reagiram salvando a verdade onde puderam, no conhecimento, e iniciaram o processo de ódio às aparências. “As aparências enganam”, poderiam ter dito. A realidade “sensível” é o território do engano, do que parece, mas não é. Terra dos inimigos da verdade, dos sofistas cultivadores do caos. Ora, a “realidade sensível” é simplesmente o mundo. É como se o mundo tivesse ficado inimigo da verdade. A filosofia fez sem dúvida grandes coisas. Mas fez também essa. Pulou fora do Real. xcelentes sistemas foram construídos apesar do mundo mantido à distância. Esse banimento medroso foi sem dúvida uma dor para a filosofia. Mas precisava ser assim. Ou os sofistas acabariam por ter razão, e tudo mergulharia no relativismo e na indiferença: fim da filosofia, fim da verdade. A filosofia se fez protetora da verdade. Era missão sagrada. Longamente cavalgou a arte de dizer o verdadeiro e afastar as aparências, o caos.
O tempo rolou. E no final do século XX os sofistas voltaram. O mundo se tornou tão hipercomplexo, tão contraído, que já não se pode dizer a verdade com a convicção cuidadosa dos filósofos. A verdade se foi. A filosofia acabou. Assim dizem, assim dizem! O que ficou foram as aparências e as opiniões. Ficaram as versões. Versões contra versões. A verdade morreu na opinião, no rumor. Um velho sol grego se pôs. Não creio que nunca mais se levante. Até porque esta nossa parte do mundo há dois mil anos tem dois sóis no seu céu. O grego e o judaico, o da razão e o da fé. As luzes são diferentes. Piscam uma para a outra. Vagalumes na noite, impedem uma definitiva escuridão.
Enquanto isso, vivemos nas opiniões. Criamos versões para as realidades que não olhamos com amor. Os fatos viram inimigos quando não concordam com a nossa opinião sobre eles. E eles são tão complexos... Têm tantas variáveis... Fatos cruzados, sins e nãos, bens e males, vai-se saber... Então escolhemos, alinhamo-nos com a melhor aparência. E decretamos a falsidade de tudo que se oponha à nossa certeza. Como se fosse verdade. É daí que irradia a horrível ideologia do “nós e eles”. Opiniões que se batem — que não precisam ter cuidado com o Real, pesar o “sim e não” que alimentou a melhor filosofia — ganharam o mundo como reinado. São soberanas. Opiniões e versões. Colapso da verdade.
Diz-se que a verdade é a primeira vítima da guerra. E é mesmo. As guerras produzem desinformação. No mundo das opiniões em estado puro, soterrado por informações excessivas, procurar a verdade dá um tamanho trabalho... Tanto cansaço... Melhor então consumir as informações mais palatáveis. As que fazem melhor figura. Dão melhores imagens. De um mundo de produção da verdade para um do consumo de imagens — que virada bruta! Mas aqui estamos. Nós e eles, os bons e os maus. Já escrevi sobre o maniqueísmo. Pois é. A luta de morte no pensamento é uma forma aguda de maniqueísmo. Em situações de guerra ou revolução, o maniqueísmo impera. O problema é que não há nenhuma revolução no horizonte. Nenhum modelo novo que encerre a colisão das opiniões sem substância. O que há é uma guerra de extermínio. Alguém precisa morrer. Cair. Levar rasteira. Ter a cabeça esmagada. E nem assim a guerra terminará. Porque nada de verdadeiramente novo será posto no lugar vazio. Vivemos cheios de vazios. Pôr um no lugar de outro é só mudar a direção do esvaziamento. Vazios ficamos.
Isso tudo tem a ver com a situação violenta que hoje vivemos no Brasil. E não é teórico. Porque, enquanto nos matamos, os pobres olham e esperam. Não como quem tem esperança. Esperam para ver se alguém os porá em cena. Eles estão fora. Os economistas discutem sua fome em números. E divergem sobre as estratégias do bolo. Fazê-lo crescer para depois distribuir, ou distribuí-lo enquanto vai crescendo. Pedir à fome que espere para se fartar ou ir matando-a aos pouquinhos, talvez devagar demais.
Mas o problema não é o bolo. É quem controla o forno. Quem determina a altura do fogo. Crescer e distribuir ou distribuir e crescer são caminhos opostos. E em relação a essa oposição já não resolve nada ter e manter uma opinião. Há a fome dos pobres pendurada nessas contas. E a fome é real. Não é questão de ponto de vista.
Chamem os filósofos de volta. Eles estão acostumados aos paradoxos. E prontos para voltar a amar a vida.

Marcio Tavares D'Amaral - O Globo, 01.04.2016

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