domingo, 13 de agosto de 2017

O homem só

 Pensando nas misteriosas influências que nos fazem ser o que somos, da loteria do DNA à escolha dos caminhos, dos afetos e dos empregos, passando pelos vizinhos, namoradas, família, heróis da infância e da vida adulta, azares e acasos, olho para trás tentando localizar alguns pontos de impacto –os instantes realmente marcantes que parecem mudar o nosso rumo. É uma tarefa impossível, porque somos parte interessada demais. Mas, afinal, somos mesmo feitos de tarefas impossíveis, e aí é que está a graça.
A primeira sensação é a de que fui feito de leituras, o que é obviamente uma mentira, se fosse para dar um peso moral a este primeiro erro de avaliação. A leitura é uma duplicação de um confuso mundo pré-existente, o qual, quando se lê e se escreve, tenta-se retificar e ratificar –chegamos à palavra escrita já cheios de vontades e escolhas, mais como um engenheiro curioso numa quadra de entulhos do que como uma vítima ingênua na escuridão. 
O momento histórico é especialmente importante, a barulhada em torno, e isso independe de nós. E a idade pesa –gostamos tanto de ordenação que nos imaginamos formatados em décadas, pessoas de proveta, um ser diferente por decanato. Não se reage do mesmo modo em tempos diferentes (embora muitas pessoas se jactem de ser sempre as mesmas, como quem faz praça da própria estátua). E há, ainda, a insídia da emoção, que nos cega e justifica.
"É cousa demais", como se dizia antigamente. Baixando a bola, fiquemos nas leituras. Como um bom sessentão, tive formação iluminista, o otimismo pós-Segunda Guerra. Tudo pode ser racionalizado, a inteligência é o valor supremo, a clareza e a nitidez são entidades éticas e o mundo só anda para a frente.
Uma mistura de Sherlock Holmes, o herói de Conan Doyle –os sinais do crime estão à vista, basta cabeça fria para revelá-los–, e de Júlio Verne, com a boa crença na ciência e a desconfiança do mal, que existe e deve ser combatido; e os finais são felizes. Cresci na atmosfera laica de um mundo que, enquanto arrastava seu passado sinistro e glorioso, tentava inventar um novo futuro, o que realmente aconteceu, na fratura geral dos anos 1960.
Cria daquele tempo, exatamente ali me reconheço. Como diz a célebre citação de William Faulkner (1897-1962), o passado não está morto; aliás, nem mesmo é passado. Como um louco circular, retorno sempre àquele ponto cego, atrás de uma chave-mestra.
Porque havia duas, incompatíveis: "Cem Anos de Solidão", a "Ilíada" da América Latina inventada por Gabriel García Márquez (1927-2014), nos dizia que a história era um ser vivo, fatal e inexorável como os deuses gregos, e que homens, árvores, nuvens e borboletas giram sob leis poéticas e transcendentes inacessíveis ao gesto humano, e é nesta entrega ao tempo que reside a surda beleza que nos cabe. 
A outra chave surgiu inteira deslocada e contraditória, e no entanto me pegou, no instante exato, as variáveis todas conjuminadas num belo e irresistível eclipse total: adolescente, anos 1960, contra os grilhões da família e a hipocrisia da sociedade, e sob influência de um guru barbudo, W. Rio Apa (1925-2016), que, num projeto mais emocional que intelectual, passou boa parte da vida tentando conciliar Nietzsche com Rousseau (o que, pensando bem, é um retrato do presente), mais a sombra do teatro como o caminho possível da libertação pessoal –e eis que me caem nas mãos as peças do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).
Ibsen é um monstro que inventou a dramaturgia moderna. Dos confins da Noruega, criou uma obra que empalideceu automaticamente todo o teatro que se fazia no século 19. Para mim, uma peça foi especial: "Um Inimigo do Povo". Resumindo: um homem descobre que as águas da cidade estão poluídas, mas a cidade depende comercialmente delas para sobreviver. 
Na luta por denunciar o crime, acaba ficando contra todos. Ele resiste, e uma frase me bateu na cabeça: o homem mais forte é o homem mais só. Naquele momento, isso era tudo que eu queria ouvir. Até hoje gosto de acreditar que ela me livrou, com um toque quase aristocrático, do rebanho. O que é engraçado para alguém que, como eu, vê numa roda de amigos bebendo cerveja uma das faces mais concretas da felicidade.

Cristóvão Tezza, Folha, 13.08.2017

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Solidão é uma questão que me toca profundamente. Lembro de uma mulher com quem me envolvi no passado ter-me feito a observação: Você é tão só. Mulheres não apreciam solitários, o que nos coloca em flagrante desvantagem frente a  concorrência. Mantenedoras da espécie preferem machos integrados ao grupo, uma garantia maior para a prole. 
Mas... há que se considerar o que escreve o Cristóvão: solidão é para os fortes. É fato! Custa  caro manter-se no prumo, de pé quando só. É investimento pesado. Vive-se em condições anóxicas de afeto,  combustível essencial para uma vida bem vivida.  Não há ombro amigo, refúgio seguro, enseada protegida, saia da mãe. É você com você, em eterna vigília. 
O solitário é um borderline. Brinca sobre o abismo, negocia com a loucura diariamente. Não por acaso,  serial killers são pessoas solitárias, anti-sociais. A cada crime cometido por um eles, a inquietação se apossa de mim: Pode acontecer comigo!
Entretanto, ser um velho lobo que nunca andou em bando - está lá em Quem sou eu - tem  suas alegrias. Cristóvão fala em não fazer parte do rebanho. Como sou um velho lobo, referencio-me  a bando. É menos elegante mas estou mais para bicho-do-mato do que para ovelha. Se rebanho ou bando,  dá um orgulho, uma satisfação imensa não fazer parte deles, ainda mais nos dias que vivemos. Olho ao redor e vejo uma hecatombe, com uma malta de cínicos e desqualificados dando as cartas, tentando nos dizer de que lado o vento sopra. Não prá cima de mim!
Como o (anti)-herói de o Inimigo do Povo, sou e sempre fui um resistente. Devo confessar, entretanto, que estou cansado. Matar um leão todo o dia, é para os fortes. Eu não sou tão forte assim.

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Afora as qualidades literárias -  sou um pigmeu perto dele -  tenho muito em comum com o Cristóvão. Somos sessentões, adolescentes na década de 60, que ele considera uma fratura;  eu diria que foi o início da fratura que se abriu de fato na década de 90.
Embora ele não seja simpático à expressão - homem feito de leituras - sou um deles, no sentido de que, introspectivo, sempre amei mais os livros do que a ação. Um teórico mais do que um experimental. No campo das idéias, ele foi educado numa atmosfera laica e iluminista, eu, em atmosfera religiosa,  iniciado na metafísica de gregos e escolásticos. Embora a clivagem divina das minhas fontes, criei um background fundado no senhorio da razão. Entretanto, dois irracionalistas: Dostoievski e Sartre, vieram bagunçar minhas certezas metafísicas e colocaram na minha agenda, o homem trágico e angustiado. Freud foi a pá de cal. Como sou ponto fora da reta mesmo, das grandes modas da minha geração:  Nietzche, Foucault, Deleuze, só conheço um pouco de Foucault. Vem daí que sou um homem inatual, parafraseando Nélson Rodrigues.
Não me arrependo. O século XX não fez muito pela filosofia, afora o existencialismo e a escola de Frankfurt. As ditas ciências humanas perderam... e muito! para as exatas. Os velhos filósofos produziram caldos bem mais consistentes. A metafísica sossobrou frente a física.

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