sexta-feira, 29 de julho de 2022

Ilusões perdidas

Taí algo que me arrependo de não ter feito no passado: ler Balzac. É opinião corrente de que é um dos maiorais da literatura mundial, mas não tinha provado.  Balzac retrata com maestria a França da Restauração, dos primeiros 30 anos  do século XIX. É impressionante sua capacidade de descrever o movimento das peças no tabuleiro representado pela sociedade burguesa da sua época tanto na provínciana Angoulême como na esfuziante Paris. Nada fica de pé.  Importam o dinheiro, a posição social e o sucesso - nada, aliás, muito diferente do que acontece em nossos dias, com outros atores e em cenário diverso. Batalha-se com todas as artes para chegar ao Santo Graal. Não há heróis na história. Virtude... há que se procurá-la com lupa. O vício é  árvore frondosa; viceja nos bastidores e coxias entre conchavos, golpes baixos, exploração das fraquezas alheias e traições, enquanto no grande palco - os salões de Paris e naqueles da província - a vida roda esplêndida e bela.  Imagino que dessa sociedade retratada por Balzac,  deva ter se originado a associação entre burguesia e hipocrisia.  Passo também a entender porque Balzac escreveu que a toda fortuna está associado um crime. A julgar pelo que sugere o enredo...

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Luciano de Rubempré (ou seria Chandon?) é o (anti)-herói da história. Jovem literato da província vai tentar a sorte em Paris, mas depara-se com uma realidade, descrita por seu amigo - ou seria comparsa? -  Estevão Lousteau, bem diferente da imaginada:

- Também cheguei com o coração cheio de ilusões, impelido pelo amor da Arte... E encontrei as dificuldades da profissão, as dificuldades das livrarias e o positivo da miséria. Minha exaltação hoje abafada, minha primeira efervescencia escondiam-me o mecanismo do mundo. Foi preciso vê-lo, chocar-se com todas as suas engrenagens, ir de encontro aos seus eixos, engraxar-se nos seus óleos, ouvir o rangidos das correntes e dos volantes.... Como eu irá saber que sob todas as coisas belas com que sonhamos, agitam-se criaturas, paixões e necessidades. Será fatalmente arrastado a tomar parte de lutas horríveis, de obra contra obra, homem contra homem, partido contra partido, nas quais a gente precisa bater-se sistematicamente para não ser abandonados pelos seus.Esses combates ignóbeis desencantam a alma, depravam o coração e fatigam em pura perda, porque os nossos esforços hão de servir muitas vezes para coroar um homem a quem odiamos, um talento de segunda classe , apresentado, a pesar nosso como um gênio. A vida literária tem também seus bastidores. Os êxitos roubados ou merecidos, eis o que a platéia aplaude. Os meios, sempre repugnantes, os comparsas degradantes, a claque e os encarregados da maquinaria, eis o que os cenários escondem.

Estevão segue relatando ao recém-chegado, a sordidez que encontrou no mundo literário,  as artimanhas dos livreiros que exploram ad infinitum os jovens iniciantes ansiosos por ter sua primeira obra impressa. Depois de peregrinarem por vários deles - desalentados - buscam sua sobrevivência no jornalismo, atividade que se iniciava na época,  e para a qual Balzac reserva palavras muito duras, utilizando-se de alguns personagens jornalistas por ele criados, boa parte, baseado em exemplos da vida real:

....se a imprensa não existisse, seria preciso não a inventar; mas ela existe, dela vivemos.

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...o jornal em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos, e de um meio passou a um negócio. Não tem fé nem lei. Todo o jornal é .... uma loja onde se vendem ao público palavras da cor que a necessidade das corcundas. Um jornal não é feito para esclarecer, mas para lisonjear as opiniões. Desse modo, todos os jornais serão, dentro de algum tempo, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos. Matarão as idéias, os sistemas, os homens, e, por isso mesmo, hão de tornar-se florescentes. Terão a vantagem de todos os seres pensantes: o mal será feito sem que ninguém seja culpado...Seremos todos inocentes, poderemos lavar-nos as mãos de toda a infâmia. Napoleão explicou a causa desse fenômeno moral - ou imoral, como quiserem....Os crimes coletivos não compromentem ninguém. O jornal pode permitir-se o procedimento mais atroz, ninguém se julga pessoalmente conspurcado por isso.

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Se o jornal inventa uma calúnia infame, foi alguém que lha sussurrou. Com o indivíduo que se queixa, ficará quite pedindo desculpas pela grande liberdade. Se for chamado aos tribunais, queixar-se-á de que não lhe foi pedida retificação alguma. Vá, porém, alguém pedi-la, e ele há de recusá-la rindo; chamará seu crime de bagatela. Enfim, achincalhará a vítima quando esta triunfar. Se for punido, se tiver que pagar pesada multa, há de assinalar o queixoso vencedor como a um inimigo da liberdade, do país, das luzes....E pode, ao fim de algum tempo, fazer acreditar tudo o que quiser às pessoas que o lêem todos os dias...Para conseguir assinantes, há de inventar as fábulas mais enternecedoras... O jornal serviria o próprio pai cru, sem mais tempero que o sal de seus gracejos, de preferência a deixar de interessar ou divertir seu público. Será o ator pondo na urna as cinzas do filho. para chorar com mais verdade: a amante tudo sacrificando ao amigo.

Sua pouca simpatia com a imprensa não era fruto apenas do seu ressentimento com alguns críticos  literários da época que insistiam em considerá-lo um escritor menor, mas baseada na venalidade das práticas dos jornais da época que ele conhecia bem: construia-se e destruia-se reputações ao sabor dos caprichos dos bicos de pena , vendiam-se críticas favoráveis, pressões externas eram aceitas tanto de políticos, banqueiros e nobreza como do mundo literário e teatral (transacionava-se ingressos, comprava-se claques...). A publicidade no seu nascedouro é também desmascarada. 

Um livro que deveria ser leitura obrigatória para todo estudante, do que nos meus tempos de universidade, chamava-se Comunicação Social. A imprensa, pelo que apreendi das minhas leituras, em boa parte da sua existência foi dominada por práticas pouco recomendáveis. O jornalismo investigativo que teve seu apogeu com o episódio de Watergate nos anos 70, resgatou em parte o papel que a ela se atribui de ser um serviço de utilidade pública e um dos pilares da democracia representativa. Leio jornais desde a infância e já acreditei mais no que publicam. Representam nichos da sociedade e traduzem para seus leitores a visão de mundo desses grupos. Qual a extensão  da sua utilidade pública? 

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...mas voltemos ao nosso Luciano. Depois de ter cumprido o roteiro profetizado por seu amigo Estevão e ter ter jogado o jogo do mundo profissional jornalistico/literário e afetivo dos amores das atrizes do mundo teatral parisiense e de ter perdido, ei-lo de volta, a pé e em andrajos,  para sua  Angoulême natal onde deu o passo final para o abismo. Quando ia cumprir seu destino, foi resgatado pelo personagem mais improvável do livro, um - cínico e maquiavélico - padre jesuíta, diplomata da corte espanhola. É ele quem fará nosso desencantado anti-herói retomar a vida nos salões parisienses. Para tanto propoe- lhe um pacto de homem com o demônio, de criança com o diplomata. Luciano lhe pertencerá; em contrapartida : 

Eu o ampararei com mão poderosa no caminho do poder, e prometo-lhe, ainda mais, uma vida de prazeres, de honras, de festas contínuas...Jamais lhe faltará dinheiro... O senhor brilhará e pompeará, enquanto curvado na lama dos alicerces, eu assegurarei o brilhante edifício da sua fortuna.

 Para chegar lá, entretanto, Luciano terá muito a aprender com o mestre. Selecionei algumas pérolas da nada convencional  homilia que o nosso padre amante do poder temporal,  passa para seu aprendiz e que ocupam 3 capítulos do livro:

A moral, meu jovem, começa na lei. Se apenas se tratasse da religião, as leis seriam inúteis: os povos religiosos tem poucas leis. Acima da lei civil está a lei política. Pois quer saber o, que, para um político, está escrito na fronte do nosso século XIX? Os franceses inventaram, em 1793, uma soberania popular que terminou nas mãos de um imperador absoluto... Sans cullote em 1793, Napoleão cinge a coroa de ferro em 1804. Os ferozes amantes da Igualdade ou Morte de 1792, tornam-se, a partir de 1806, cúmplices de uma aristocracia legitimada por Luís XVIII...Na França, pois, tanto a lei política como a lei moral consistem em que todos tem desmentido o ponto de partida do ponto de chegada, as suas opiniões com a sua conduta, ou a conduta com as opiniões....De modo que não tendes mais moral. Hoje entre vós o sucesso é a razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas. O fato não é pois mais nada por si mesmo, consiste inteiramente na idéia que os outros formam a seu respeito. Vem dai, jovem, o segundo preceito: Tenha um belo exterior! esconda o avesso da sua vida e apresente um direito muito brilhante. A discrição, essa divisa dos ambiciosos,é da nossa ordem: adote-a como sua. Os grandes cometem quase tantas covardias como os miseráveis: mas cometem-nas na sombra e fazem ostentação de suas virtudes: permanecem grandes. Os pobres exercem suas virtudes na sombra e expõem suas misérias ao sol: são desprezados.

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Mude de proceder: ponha do lado de fora a sua beleza, as suas graças, o seu espírito, a sua poesia. Se se permitir pequenas infâmias, que seja entre quatro paredes. E então não será mais culpado por enodoar o cenário desse grande teatro a que se chama o mundo. Napoleão chama a isso lavar a roupa suja em casa. Do segundo preceito decorre este corolário: tudo reside na forma. Há pessoas sem instrução que, levadas pela necessidade, tomam uma soma qualquer a outrem, por violência. São chamadas de ladrões e vêem-se obrigadas a prestar contas à justiça. Um pobre homem de gênio descobre um segredo cuja exploração equivale a um tesouro, emprestam-se-lhe três mil francos....atormentam-no de maneira a fazê-lo ceder todo ou parte do segredo, e neste caso só tem de prestar contas à consciência, e a consciência nunca leva ninguém ao banco dos réus. Os inimigos da ordem social aproveitam esse contraste para bradar contra a justiça e indignar-se em nome do povo pelo fato de se mandar para as galés um ladrão de galinhas que age de noite num lugar habitado, ao passo que se põe  na prisão apenas por alguns meses a um homem que arruina famílias, abrindo falência fraudulenta; mas esses hipócritas bem sabem que os juízes, condenando o ladrão, mantém a barreira entre os pobres e os ricos, a qual, derrubada, traria o fim da ordem social; ao passo que o bancarroteiro, o hábil captor de heranças, um banqueiro que arruina uma empresa em seu proveito, só produzem  deslocamentos de fortuna.....A grande questão é a gente igualar-se à sociedade. Napoleão, Richelieu, os Médicis igualaram-se ao seu século....A vossa sociedade não mais adora o verdadeiro Deus, mas o bezerro de ouro! Tal é a religião da vossa Magna Carta, que , em política, só leva em conta a propriedade. Não é  o mesmo que dizer a todos os súditos: Tratem de enriquecer! Quando, depois de arranjar legalmente uma fortuna, o senhor for rico e Marquês de Rubempré, poderá permitir-se ao luxo da honra. Professará então tamanhos escrúpulos que ninguém ousará acusá-lo de não os ter tido algum dia....Unicamente o tema seguinte: Colimar um fito brilhante e ocultar os meios de vencer, os passos dados na sua direção. O senhor prcedeu como uma criança! seja homem, seja bom caçador, ponha-se à espreita, fique de tocaia no mundo parisiense, aguarde uma presa e uma ocasião, não poupe nem a sua pessoa nem o que se chama de dignidade; pois obedecemos todos a alguma coisa, a um vício, a uma necessidade; mas observe a lei suprema! o segredo.

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O senhor não tem nada. Está na situação dos Médicis, de Richelieu, de Napoleão, quando do início da sua ambição. Esses, meu pequeno, avaliaram o seu futuro ao preço da ingratidão, da traição e das contradições mais violentas. É preciso tudo ousar para tudo ter. Raciocinemos. Quando o senhor se assenta a uma mesa de jogo, acaso lhe discute as condições? As regras ali estão, o senhor aceita-as.....Pratica ali a mais bela das virtudes, a franqueza?Não somente oculta o seu jogo, mas ainda trata de dar a entender, quando está certo de ganhar, que vai perder tudo. Dissimula, em suma, não é verdade? Mente para ganhar cinco luíses...Que diria o senhor de um jogador bastante generoso para prevenir os outros de que tem o trunfo? Pois bem, o ambicioso que quer lutar auxiliado pelos preceitos da virtude, numa carreira que seus antagonistas os põem de lado, é uma criança a quem os velhos políticos diriam o que dizem os jogadores àquele que não aproveita os seus trunfos: Senhor não jogue nunca... É por acaso o senhor quem faz as regras no jogo da ambição? Por que lhe disse eu que se igualasse à sociedade? É que hoje, meu jovem, a sociedade insensivelmente se arrogou tantos direitos sobre os indivíduos que o indivíduo se vê obrigado a combater a sociedade. Não há mais leis, só há costumes, isto é, macaquices, sempre a forma.

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Da imensa galeria de personagens que povoam o romance, são apenas duas as flores que conseguem emergir do pântano.

Na província, David Séchard, o melhor amigo de Luciano, a esposa - a bela Eva - irmã de Luciano e sua própria mãe. Apesar de íntegros, foram tragados pelo lodaçal. David - cujo retrato fisico era o do próprio Balzac - herdou - de fato comprou! -  a tipografia do pai, um velho avarento. Tinha espírito inventor mas era péssimo nos negócios;  praticamente abandonou a tipografia para dedicar-se  totalmente a  descobrir uma maneira mais barata de produzir papel que na época era obtido do cânhamo e de trapos preferencialmente de linho. Após conseguir descobrir a fórmula teve que entregá-la aos concorrentes, depois de ter sido espoliado pelos próprios, associados a  banqueiros e ao procurador da província.  Só não terminou na miséria, graças à herança do pai.

Na trepidante Paris dos salões, mas deles distante,  os membros do Cenáculo, um grupo de nove personagens representando diferentes ramos da ciência, artes e literatura que reuniam-se quase todas as noites no quarto de Daniel de Arthez, o representante da literatura e que introduziu Luciano entre eles. Alí, a estima e a  amizade faziam reinar  a paz entre as idéias e doutrinas mais opostas... e  ...a grande miséria exterior e o esplendor das riquezas intelectuais produziam um contraste singular.

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Num dia em que o frio se fez sentir prematuramente, cinco amigos de de Arthez chegaram, cada qual tendo tido a mesma idéia: todos traziam a mesma lenha sob a capa, tal como nesses repastos campestres a que cada convidado deve fornecer um prato e ao qual levam todos um pastelão. Dotados dessa beleza moral que reage sobre o físico e que, não menos que os trabalhos e vigílias, doura os rostos jovens de um colorido divino, eles apresentavam os traços um pouco atormentados que a pureza da vida e o fofo do pensamento regularizam e purificam. Suas frontes faziam-se notar pela amplitude poética. Os olhos vivos e brilhantes testemunhavam uma vida sem máculas. Os sofrimentos da miséria, quando se faziam sentir, eram suportados tão alegremente, aceitos com tal ardor por todos, que absolutamente não alteravam a serenidade peculiar aos jovens, ainda isentos de faltas graves, que não se amesquinharam em nenhuma das covardes transações a que levam a miséria mal suportada, o desejo de triunfar sem escolha dos meios, e a fácil complacência com que os homens de letras acolhem ou perdoam as traições.

Alguns deles conquistaram a glória com o passar do tempo,  mas outros sucumbiram.

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Ao final do livro,  traçados os destinos dos seus principais personagens, veio-me à mente uma frase que no passado deixava-me contrariado mas que hoje a partir da experiência de vida, me parece cada vez mais verossímel: são os vícios que movem o mundo, mas é indispensável dissimulá-los. 

E quanto aos virtuosos... terminarão como David Séchard e alguns dos membros do Cenáculo? Seriam eles, otários?

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Balzac, Honoré de, As Ilusões Perdidas, Trad. Ernesto Perlanda (Partes I e II) e Mario Quintana (Parte III), Obras Primas, Abril Cultural, 1981.


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