sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Crônica de Ano Novo





Coloquei minha mãe na cama. Velhinha, não suportaria ficar de pé até a meia-noite. Eram 23:00 horas. Fui para a sacada. O apê está num andar alto o suficiente para se ter uma boa visão dos arredores.  Os fogos começavam a estourar, em pequena quantidade, pois ainda estávamos longe da virada. Belos, alguns barulhentos, pintavam a noite das mais diversas cores, desmanchavam-se no ar. Como nossos sonhos, nossas vidas. Lembrava-me de Shakespeare: muito barulho por nada ou de Marx: tudo que era sólido desmancha no ar.
Só como soi acontecer,  desta vez precisava de uma companhia. Encontrei-a num Partagas dominicano - gosto deles, mais fracos que os cubanos - e... precisava de bebida! Só havia um vodca barato no refrigerador. Não tinha escolha. Seria com ele mesmo. 
Entre goles de vodca barato e baforadas de charuto, ali naquela sacada,  fiz um revival do ano que terminava. Entrei nele com a alma aos pedaços. No terreno afetivo, apostara - contra a banca é verdade -  e perdera. Ainda convalescia existencialmente quando o dragão da maldade se abateu sobre mim. Senti seu fogo destruidor, provei do veneno da sua peçonha. Feriu profundamente... As dores da alma são  infinitamente superiores àquelas do corpo. Essas vieram em seguida. Descolei a retina do olho direito pela terceira vez. Entre um golpe e outro, sobreviví. As marcas ficaram; o olhar para as pessoas está cada vez mais duro, fisicamente a visão do meu olho direito se precariza. O tempo nos estropia, no corpo e alma.
Em meio a esse vendaval, aparecem Francisco e sua legião de jovens. Uma lufada de ar fresco. Trouxeram decência para um Rio hedonista, escrachado. Pena que foram poucos dias. Jamais havia visto alegria mais genuína. Foi o momento up do ano. Até pensei em retomar a batina e os votos.
Após, os dias correram plácidos, minha alma aquietou-se. Se enfrentei o dragão da maldade nos meses iniciais,  sinto a sombra do anjo da morte nesses dias finais. Minha mãe depois de uma virose, está muito debilitada. Por circunstâncias, tornei-me seu cuidador  freelancer  e pude perceber o que é viver por um fio; da fragilidade de nossas vidas. Contive o choro várias vezes. Estou tentando distrair esse implacável anjo. Tento desviá-lo para atuar em outra freguesia. Terei sucesso? Sou péssimo na arte da negociação.
Aposentei-me. Afasto-me  da empresa todos os meses por uma semana. Passo-a junto de minha mãe. Bem-aventurados dias, um spa para a alma, distante da rotina e do local de trabalho onde a virtude não é mais que uma ilhota em meio a um oceano onde mesclam-se ambição, mediocridade e dissimulação. Representa-se sempre. Tudo não passa de um teatrinho mais e mais enfadonho - pior - com os atores levando-se a sério; esquecem que os atos falhos os desnudam. Esse caldo existencial ralo, só faz aumentar minha reclusão. Trabalhar torna-se um fardo a cada dia mais pesado.
Imerso nas venturas e desventuras do ano cheguei ao seu  momento final. O charuto também vivia seus últimos momentos;  a vodca sustentou-o valentemente. Numa alegria desatada, os fogos  multicoloriram os céus. Havia muitos deles, uma surpresa para uma cidade média do interior. Havia também, um infeliz lá embaixo - disseram-me depois que é um morador de uma casa ao lado - que desde a tarde jogava bombas ensurdecedoras na rua. A proximidade da virada fez com que ampliasse seu repertório de insanidade, acrescentando foguetes  que subiam e estouravam praticamente na altura do  andar do apartamento. Transbordei, xinguei-o até a última geração. Eu próprio assustei-me com tamanha virulência reprimida. As águas que represei aqui, precipitaram-se como pororoca sobre  o insano lá embaixo. Ele, impassível, soltou mais dois ou três foguetes em minha homenagem e depois silenciou.
2014 promete!

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