Há muito que leio a Bíblia, apesar de ter nascido sem o órgão da fé. Uma ideia que, para mim, é insuperável, e muito estranha ao mundo contemporâneo, é a de que nada existe de novo embaixo do sol. Nosso mundo, tomado pela moda como ontologia (.......), tem dificuldade em apreender o que seriam grandes rotinas que se repetem desde muitos milênios e que se impõem a nós.
Claro que mudanças acontecem. As tecnologias avançam, a Medicina avança, as idéias políticas circulam. Mas a questão sobre um nível perene de realidade se coloca noutro plano, aquele de processos que se repetem e nos fazem perguntar se há algo de novo sob o sol, como nos fala o sábio bíblico do Eclesiastes. Nascer, crescer, plantar, colher, reproduzir e morrer são algumas marcas desses processos ou instantes. Diante de uma sociedade afeita a modas, pergunto-me se a experiência cotidiana não está contida numa incapacidade humana de mudar nossa condição na Terra: por que estamos aqui? Para onde vamos? Qual é o sentido de tanta labuta? Normalmente, diante de um ataque cardíaco ou da morte de um ente amado, a sensação de que a tagarelice contemporânea e sua excessiva crença em si mesma mais atrapalham do que ajudam é gritante.
Outro exemplo pontual é a tentativa de reinventar as relações entre os seres humanos, definindo-as como políticas ou construções sociais. Ridículos chegam a afirmar que podemos nos definir até no sexo. Caminhamos como se a vida fosse livre como a escolha de um desodorante, apesar de que, no silêncio do dia a dia, nos afogamos na incapacidade de dar nomes aos nossos impulsos e sentimento. Entre a crença nos instintos como símbolo de algum equilíbrio natural ( a natureza é o lugar do desequilíbrio, e não do equilíbrio!) e a utopia de um homem inventado por idéias, fracassamos diante da necessidade de comer, dormir, nascer e morrer, apesar do grito geral a favor de um mundo de luxos e direitos.
A pergunta do Eclesiastes acerca da vaidade como fundo de tudo sob o sol está ancorada no significado mais profundo da palavra latina (vanitas) que traduz neste livro bíblico a expressão do hebraico antigo nuvem de nada, vento que passa. Vanitas, antes de ser uma luta contra o envelhecimento e a falta de beleza, significa o vazio que nos ronda e que se materializa em nossos limites tão desejados. No mundo contemporâneo, pensamos que podemos votar contra o medo, o fracasso, a inveja, a mentira e a hipocrisia. Essa negação do fato de que não existe almoço de graça prepara a negação maior de que, no limite, não somos o que a Psicanálise chama de ser da falta. Como crianças mal criadas que atingiram os 40 anos, gritamos contra a injustiça do universo contra nós e declaramos esse vazio uma falta de respeito.A maquiagem como mentira da beleza é menos enganosa do que uma cultura que gosta de se reafirmar como livre de gravidade e do trabalho de sol a sol. O suor é, assim declarado uma forma de preconceito contra nosso direito à eternidade.
É comum nos referimos às pessoas como coitadas porque têm de enfrentar a vida. Algo que, antes, era considerado óbvio - a vida não tem garantias-, hoje se tornou um erro cósmico. Esse equívoco se evidencia de forma mais gritante no olhar que muita gente tem sobre as contingências da vida social e econômica. Criticamos o mundo como se ele fosse responsável por sobrevivermos ou não. Em casos como esses é que o ressentimento se torna mais evidente: a sociedade e as pessoas devem ser responsabilizadas por escolhas individuais. Se me endivido, a culpa é do banco. Se não tenho emprego, a culpa é da sociedade que me obriga a trabalhar. A questão é: quem foi o desgraçado que inventou essa história de que devemos amadurecer e enfrentar o fato de que não há garantias para nada? por que esses ressentidos acham que a a sociedade deve nos dar tudo o com isso fazer de nós uns retardados mentais em termos de moral? A necessidade de que a vida seja garantida atinge níveis metafísicos desde sempre: este é o núcleo de nosso desejo metafísico religioso, a saber, que algo ou alguém garanta nossa sobrevida, mesmo depois da morte. Morto Deus ( pelo menos tendo Ele concorrentes mais próximos, como a vida secular, científica e racionalizada), essa forma de ressentimento se escondeu nas camadas mais medíocres da existência: assumiu a forma de uma petição contínua para que eu seja uma eterna criança a ser cuidada. Se Freud dizia que amadurecer é aceitar uma orfandade, o amadurecimento passou a ser considerado um modo de opressão. Coitados de todos nós, que somos obrigados a suportar essa ladainha daqueles que não conseguem compreender o que, desde a tragédia grega, se sabe: a vida nunca teve garantias.
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Posso ser o que eu quiser
Não, você não pode ser o que você quiser. É modinha, hoje, afirmar que posso ser o que quiser. Numa mistura bombástica entre crítica dos anos 1960 à Psiquiatria (.....) e simples preguiça mental, muitos contemporâneos afirmam que, se eu quiser ser X, posso ser.
Sim, talvez eu poderei ser médico se me esforçar muito, mas não posso ser Jesus se quiser. Se pensar que sim, serei apenas ridículo ou louco. Mas esse tipo de discurso que parece buscar uma liberdade total, apenas revela o tédio da própria identidade
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Mas o traço característico dessa forma de preguiça é confundir o peso da identidade com o sonho infantil de que me livro dela quando quiser e que, portanto, se sou X, o sou porque quis, logo, sou livre. Mais uma mentira a serviço de nossa incapacidade para lidar com o sofrimento. Coisas básicas como ser eu mesmo se tornou tamanho desafio que é melhor crermos em ficções como posso me inventar quando quiser. Talvez o maior equívoco da cultura em que afogamos nossos jovens seja essa idéia de que eles teriam descoberto modos de resolver a vida e se inventar.
Políticas do Ressentimento.
A Psicanálise afirma que somos seres da falta. Essa falta está inscrita na nossa incapacidade de sermos seres plenos. Desejamos o tempo todo porque nunca estamos satisfeitos. A cada realização de um desejo, o objeto que o realiza tomba sob o efeito do tédio. A mulher não é mais tão gostosa, o homem tampouco permanece tão sedutor.
No mundo de mimados em que vivemos, essa falta é declarada irreal. Compramos tudo para não a sentir por cinco minutos, acreditamos em teorias absurdas sobre a natureza humana (somos lindos, e a sociedade é que nos faz feios) para não experimentarmos o fracasso de nossa virtude, criamos utopias que sustentam um paraíso onde ninguém viverá o mal-estar do qual nos falava Freud. Aliás, apesar de repetirmos esse mal-estar ao longo da vida, como o sábio de Viena disse que acontece, declaramos guerra à verdade dizendo que tudo é culpa da má construção social do sujeito. Mesmo a psicologia profissional tomba diante da negação da falta. Um mundo incapaz de suportar essa falta é um mundo povoado por adultos retardados mentais, que jamais alcançam aquilo que nos define como adultos (......):a angústia de saber que jamais seremos felizes.
O Insuportável Singular
Interessante contradição da era do ressentimento: fala-se muito dos direitos do eu, da pessoa, do indivíduo, mas ninguém suporta a singularidade. Ser uma pessoa singular virou um produto de marketing do eu. Todo idiota do bem se acha uma pessoa singular, livre de preconceitos que o definam. Mas nunca foi tão impossível sustentar essa posição, porque a singularidade exige um percurso mais próximo dos exercícios espirituais dos velhos monges do deserto do que das preocupações com a felicidade típica dos mimados contemporâneos.
A contradição salta aos olhos uma vez que nós falamos muito no eu livre das tradições, e os monges buscavam o aniquilamento do eu a fim de fazê-lo dissolver-se numa tradição, a do Cristianismo. A verdade é: quanto mais quero ser eu mesmo, mais sou como um conjunto de projeções e manias herdadas dos outros ou criadas por meu próprio narcisismo. Às vezes, quando desisto de me autoafirmar, torno-me menos ridículo.
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A singularidade de uma alma não é ser bem resolvido....... mas fracassar em ser bem resolvido e viver um dia após o outro tendo que criar sua própria sinfonia, sem garantias, sem modas, sem militâncias, apenas sabendo que não pertence a um bando de vitoriosos.
Luiz Felipe Pondé, A Era do Ressentimento, Leya, 2014.
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