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Estreia desta semana na MTV, "A menina sem qualidades", série dirigida por Felipe Hirsch - que tem um trabalho consagrado no teatro -, é um dos mais finos biscoitos da recente produção nacional na televisão. O programa emburaca pelas dores de uma adolescência cinzenta e caminha nessa sombra sem edulcorar. Por outro lado, faz isso evitando a tentação de tornar carregado demais o que já é um fardo. Em outras palavras, o drama vai falando por si. O roteiro é uma adaptação de Hirsch, Marcelo Backes e Renata Melo do livro da alemã Juli Zehfaz, e seu título, uma referência a "O homem sem qualidades", do austríaco Robert Musil. Tudo gira em torno da problemática Ana (Bianca Comparato), de 16 anos. Tudo se passa num clima de introspecção que se reflete na câmera, na maioria das cenas, fechada na personagem. Essa escolha também ajuda a expressar a sua desoladora sensação de solidão. Diferentemente de seus pares de geração, Ana "tem preguiça da internet", onde, considera, "só se fala de sexo, dinheiro e guerra". Inicialmente apaixonada por outra menina, busca traduzir seus sentimentos através de excertos de livros (segundo o relato da mãe no primeiro episódio, "ela já leu Freud, Nietzsche, Álvares de Azevedo, 'aquele livro grosso do Inferno', os russos, os românticos..."). Embora uma hora ou outra "A menina sem qualidades" caia no enciclopedismo artificial, a melancolia da personagem é tão grande que salva o resultado da pretensão. É que o mar de citações funciona também para o programa como uma conexão entre a angústia de Ana e o mundo externo dela. No segundo episódio, com o coração partido pela namorada, ela muda de escola. Num primeiro momento, encontra uma turma e um amigo, mas o isolamento continua. Ana parece diferente dos outros e é assim que ela se enxerga. Mas essa não é, claro, a realidade. Por isso, com certeza, grande parte do público da MTV vai se identificar com ela. "A menina sem qualidades" faz uma representação muito sensível da adolescência, com a descoberta do sexo, da literatura e da música, o isolamento social, a insegurança e outras mazelas. Bianca tem um desempenho impressionante, e o elenco, aliás, é bom como um todo. A produção possui ainda uma trilha de primeira. Outro ponto alto é o fato de Hirsch ter tido sucesso total em apresentar duas camadas de ação paralelas, igualmente potentes e que dialogam. Uma delas mostra o que se passa com a protagonista internamente. A outra, o mundo externo (a mãe, os colegas da escola etc). Ana bate e apanha e a série apresenta isso fora da ordem cronológica, o que garante um retrato fiel da gangorra emocional da garota. Diferentemente da maioria dos programas que têm a adolescência como tema, essa série desvia 100% do padrão bonitonas-e-fortinhos que domina a TV. E acaba revelando que a libido, um dos ingredientes mais fortes da teledramaturgia, pode estar em outros modelos. Se Hirsch contribui muito para o teatro, ele é muito bem-vindo na televisão.
Patricia Kogut
O Globo - 30.05.2013
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