domingo, 25 de agosto de 2013

Montaigne

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Quem foi afinal Montaigne? Para Auerbach, podemos dizer que ele foi o primeiro escritor.Ou, pelo menos, o primeiro a esboçar a imagem moderna do escritor. Para quem ele escreveu seus célebres Ensaios - cerca de mil páginas, redigidas ao longo de 20 anos? Para ninguém, afirma Auerbach, embora Montaigne sustentasse que escrevia apenas para si mesmo. Seu objetivo, dizia ainda, era traçar (e também dissimular) os limites do seu mundo interior. Resumiu assim: É preciso fazer como os animais, que apagam as pegadas à entrada da toca. 
Aos 38 anos, Montaigne se recolheu à solidão. Restringiu  sua vida, a partir daí, à busca eu interior. Não se trata de uma fuga, Aurbach analisa. Foi uma experiência que, no século XVI, ainda não tinha um nome. Falava de um território alagadiço e escuro que, só trezentos anos depois, Sigmund Freud conseguiu delimitar. Nos Ensaios, Montaigne, abandona-se a si mesmo. Em outras palavras: mergulha em si.
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Para Montaigne, a vida é apenas uma travessia. Uma longa viagem a cavalo, como as que ele tanto apreciava. Não retrato o ser, retrato a passagem, disse. O homem está sempre sozinho, a morte é certa. Nunca está em casa, está sempre em viagem. O que possui, o que lhe resta? Só ele mesmo, pensava.
Com seu cavalo, Montaigne bordejava o abismo. Do sentimento vertical que exprime o abismo e também a consciência da morte, forjou o destino de escritor. Escravo da morte, desfrutou, com mais gosto, da liberdade. Todos os dias caminham em direção à morte, escreveu, o último nela chega. Dessa certeza tirou forças para viver. Começou a escrever os Ensaios em 1571. Três anos antes, sofreu grave queda de cavalo, que quase o matou. Assim descreve a experiência: Pareceu-me que um relâmpago me revolvia a alma e que eu voltava de outro mundo. Esse bafejo da morte, clarão repentino o levou a escrever.
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Costumamos achar que o mundo de hoje é turbulento e incompreensível, mas já é esta a imagem do mundo que, no século XVI, Montaigne nos ofereceu. Veveu na era das Guerras Religiosas, em uma França sangrenta e em desordem. Contudo, nunca se exclui do mundo que vê. Tanto que diz: Sou eu mesmo a matéria do meu livro. Adota o desalinho como destino. A desordem como alma.
Para Montaigne, a vida não impõe leis, oferece possibilidades. Se vamos morrer, é porque temos a chance de viver. Se somos escravos, só por isso aspiramos a liberdade. Gostava da síntese que Lucrécio, ainda no século I antes de Cristo ofereceu: No manancial dos prazeres, uma certa amargura sobressalta. Todo prazer traz consigo uma dose de mal e de inconveniente. É só por contraste com a infelicidade que podemos experimentar alguma felicidade.
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Michael de Montaigne foi um apreciador da impureza que, feita de contrastes e de agitação sintetiza o humano. Para ele, os deuses nos vendem todos os bens que nos dão - o que significa dizer que nada nos dão de puro e de perfeito. Pior: somos obrigados, sempre, a pagar com algum mal.  Essa atração para o impuro o afastou dos fanatismos e dos dogmas. E o aproximou do desassossego que caracteriza o ensaio.
Foi um homem de coração aberto, que não excluia a queda da sua existência.. Não é por outro motivo que só depois de um acidente grave se torna escritor. Como excluir a queda da aventura? Por que satanizar a derrota? Montaigne apreciava uma idéia de Horácio: Quem salva a alguém contra a sua vontade, faz o mesmo que matá-lo. (10/11/2007)

Josué Castello - Sábados Inquietos

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