Às vezes eu sinto a angústia de um menino
perdido numa multidão. Vivemos
hoje no Brasil um período inusitado
de estabilidade política permeada
pelas superimposições promovidas pelo casamento
entre hierarquias aristocráticas — que
em todas as sociedades, e sobretudo na escravidão,
como percebeu o seu teórico mais sensível,
Joaquim Nabuco, tem como base a amizade e a
simpatia pessoal — e o individualismo moderno
relativamente igualitário que demanda burocracia
e, com ela, uma impecável, abrangente
e inatingível impessoalidade.
O hibridismo resultante pode ser negativo ou
positivo. Pelo que capturo, o hibridismo — ou o
mulatismo ético — é sempre malvisto porque ele
não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso
as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as
Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase
na purificação e na eugenia — na coerência
absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas
do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado
e tende a derrapar como um carro dirigido
por jovens bêbados quando saem da balada; ou
da esquerda carismático-populista, burocrática e
patrimonialista no poder. Desconfio que continuamos
divididos entre tipos de dominação weberiana
e suas instituições. Fazer a lei e, sobretudo, preparar
a sociedade para a lei; ou simplesmente
prender? Chamar a polícia (que é, salvo as honrosas
exceções, intensamente ligada aos bandidos e
chefes do crime paradoxalmente presos) ou resolver
pela “política”? Mas como fazê-lo se os “políticos”
(com as exceções de praxe) estão interessados
no desequilíbrio porque a estabilidade impede e
dificulta a chegada ao “poder”? Poder que significa,
além da sacralização pessoal, um imoral enriquecimento
pelo povo e com o povo. Ademais, somente
uma minoria acredita na Política representada
por instituições igualitárias e niveladoras.
Para ser mais preciso ou confuso, amamos a
dominação racional-legal estilo germano-romana,
mas não deixamos de lado nosso apreço
infinito pela dominação carismática em todas
as esferas sociais, inclusive na “cultura”, como
revela esse disparate de censurar biografias. Temos
irrestrita admiração por todos os que usaram
e abusaram da liberdade individualista
nesse nosso mundinho relacional quando lhes
perdoamos e não os criticamos, o que conduz a
uma confusão trágica entre o uso da liberdade e
o seu abuso irresponsável. Esses mimados pela
vida e exaltados pelos amigos — os nossos maluquinhos
— legitimam a ambiguidade que se
consolida pelo pessoalismo do herói a ser lido
pelo lado do direito ou do avesso. Esse avesso
que, no Brasil, é confundido com a causa dos
oprimidos num esquerdismo que tem tudo a
ver com uma “ética da caridade” do catolicismo
balizador e historicamente oficial. Com isso, ficamos
sempre — como dizia aquele general-ditador
— a um passo do abismo. Andar para trás
é condescendência; para a frente, suicídio.
Como gostamos de brincar com fogo, estamos
sempre a um passo da legitimação da violência
justificada como a voz dos oprimidos que ainda
não aprenderam a se manifestar corretamente.
E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino
efetivamente igualitário ou instrumental para o
igualitarismo numa sociedade cunhada pelo
escravismo e por uma ética de condescendência
pelos amigos e conhecidos?
Pressinto uma enorme violência no nosso sistema
de vida. Temo que ela venha a ocupar um
território ainda mais denso e seja usada para legitimar
outras violências tanto ou mais brutais
do que os “quebra-quebras” hoje redefinidos como
“manifestações”. Protestos que começam como
demandas legítimas e, infiltrados, tornam-se
“quebra-quebras”. Qual é o lado a ser tomado se
ambos são legítimos e, como é óbvio, dizem alguma
coisa como tudo o que é humano?
Estou, pois, um tanto perdido e um tanto
achado nessa encruzilhada entre demandas legais
e prestígios pessoais. Entre patrimonialismo
carismático e burocracia, os quais sustentam
o “Você sabe com quem está falando?” —
esse padrinho do “comigo é diferente”, “cada caso
é um caso”, “ele é meu amigo”, “você está errado
mas eu continuo te amando”... E por aí vai
numa sequência que o leitor pode inferir, deferir
ou embargar.
Embargar, aliás, é o verbo e a figura jurídica do
momento em que vivemos e dos sistemas que se
constroem pela lei, mas confundindo a regra com
o curso torto, podre e vaidoso da humanidade,
tem as suas cláusulas de desconstrução. Com isso,
condenamos com a mão direita e embargamos
com a esquerda; ou criamos os heróis com a
esquerda e os embargamos com a direita. Construímos
pela metade. O ponto que já foi ressaltado
por mim algumas vezes é o simples: se conseguirmos
assumir abertamente a ambiguidade há
a esperança de controlá-la. E isso pode ser uma
enorme vantagem num planeta cujo futuro é um
inevitável “abrasileiramento”.
Assim, ao sermos obrigados a calvinisticamente
condenar, como fazem os nossos brothers
americanos que todo dia atiram nos próprios
pés, podemos assumir em definitivo que
todos têm razão. Afinal de contas, o Brasil é um
vasto programa de auditório com pitadas de
missa solene e jogo de futebol.
ROBERTO DAMATTA
Roberto DaMatta é antropólogo
O Globo, 23.10.2013
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