Apesar do tema da crônica ser o fundamentalismo, pincei o trecho abaixo que se encaixa naquilo que escrevi dias atrás em Inquietações. Depois de lê-lo, acrescentaria ao desastre ambiental, o fundamentalismo como outra evidência no século XXI da inviabilidade do projeto ser humano.
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Não quero bater numa nota
só nessas crônicas, mas digo que os fundamentalismos, uma das faces do
Mal na nossa civilização planetarizada, são consanguíneos das sociedades
pós-modernas.
Não é implicância. Olhemos bem. Nas origens do Ocidente, lá pelo século I
d.C., a fonte grega do Ser, da razão e da filosofia se cruzou
inesperadamente com as águas judaicas de Deus, da fé e da religião. E a
cultura cristã resultante fundou um novo mundo sobre a pedra fundamental
de razão e fé: não podíamos tocar a carne verdadeira do mundo sem
recorrermos às mediações da razão e, em simultâneo, às imediatas
intuições da fé. Em torno delas gravitaram filósofos e teólogos,
filósofos e cientistas, fundaram-se as universidades, levantaram-se as
catedrais, inventou-se a separação entre o espaço público da razão e a
esfera privada da fé. Com lupa de detetive histórico podem-se rastrear
os sucessivos rolamentos dessa pedra fundamental, e por eles contar a
nossa história. Até o século XIX, quando a ciência, sozinha, tomou o
trono da verdade. E a fé bateu nas cordas do ringue.
E aí passou-se o inimaginável: a ciência, soberana recente,
encantou-se, no século XX, com a hipereficácia das novas tecnologias de
ponta do conhecimento e da informação e fez seu salto mortal: piruetou
no ar, caiu de pé no campo tecnológico, e, para dar conta dessa proeza,
jogou fora o lastro da verdade. Essa, com a sua natureza absoluta, não
combinava com o pragmatismo dos sistemas tecnológicos, aos quais só
interessam resultados. A verdade girou no ar, carregando consigo a
pergunta pelos fundamentos da vida e do mundo, e caiu nas mãos dos que
nunca se interessaram pela razão e suas mediações ponderadas. Essas são
as mãos dos fundamentalistas religiosos. Desde aqueles que explodem
crianças até os que ocupam horas de televisão com a banalidade dos
milagres pagos adiantado.
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Marcio Tavares D'Amaral - Fundamentalismos - O Globo, 20.06.2015
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