sexta-feira, 26 de junho de 2015

Inquietações II

Apesar do tema da crônica ser o  fundamentalismo, pincei o trecho abaixo que se encaixa naquilo que escrevi dias atrás em Inquietações. Depois de lê-lo,  acrescentaria ao desastre ambiental, o fundamentalismo como outra evidência  no século XXI da inviabilidade do projeto ser humano.
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Não quero bater numa nota só nessas crônicas, mas digo que os fundamentalismos, uma das faces do Mal na nossa civilização planetarizada, são consanguíneos das sociedades pós-modernas.
Não é implicância. Olhemos bem. Nas origens do Ocidente, lá pelo século I d.C., a fonte grega do Ser, da razão e da filosofia se cruzou inesperadamente com as águas judaicas de Deus, da fé e da religião. E a cultura cristã resultante fundou um novo mundo sobre a pedra fundamental de razão e fé: não podíamos tocar a carne verdadeira do mundo sem recorrermos às mediações da razão e, em simultâneo, às imediatas intuições da fé. Em torno delas gravitaram filósofos e teólogos, filósofos e cientistas, fundaram-se as universidades, levantaram-se as catedrais, inventou-se a separação entre o espaço público da razão e a esfera privada da fé. Com lupa de detetive histórico podem-se rastrear os sucessivos rolamentos dessa pedra fundamental, e por eles contar a nossa história. Até o século XIX, quando a ciência, sozinha, tomou o trono da verdade. E a fé bateu nas cordas do ringue.
E aí passou-se o inimaginável: a ciência, soberana recente, encantou-se, no século XX, com a hipereficácia das novas tecnologias de ponta do conhecimento e da informação e fez seu salto mortal: piruetou no ar, caiu de pé no campo tecnológico, e, para dar conta dessa proeza, jogou fora o lastro da verdade. Essa, com a sua natureza absoluta, não combinava com o pragmatismo dos sistemas tecnológicos, aos quais só interessam resultados. A verdade girou no ar, carregando consigo a pergunta pelos fundamentos da vida e do mundo, e caiu nas mãos dos que nunca se interessaram pela razão e suas mediações ponderadas. Essas são as mãos dos fundamentalistas religiosos. Desde aqueles que explodem crianças até os que ocupam horas de televisão com a banalidade dos milagres pagos adiantado. 
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Marcio Tavares D'Amaral - Fundamentalismos - O Globo, 20.06.2015

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