Em Porto Alegre havia um cinemeiro, fã de filmes classe B,
que dizia “Como é bom ver filmesruins!” Era o seu lema, e ele tinha até uma
escala de diretores preferidos, numa ordem de lamentável a horroroso. Naquela
época, a gente também tinha um lema, nunca declarado, mas tácito, que era “Como
é bom ver filmes deprimentes”. Íamos ao cinema para sermos arrasados pela
inviabilidade da condição humana e o vazio existencial da vida moderna, e
voltávamos no dia seguinte para sermos arrasados de novo. No topo da nossa
escala de diretores deliciosamente depressores estavam Ingmar Bergman e
Michelangelo Antonioni, que morreram quase ao mesmo tempo.
O grande paradoxo, e a grande arte, de Bergman e Antonioni
era esta, a de nos maravilhar com a nossa própria desgraça. Bergman ainda fez
algumas comédias, mas Antonioni só repetiu em seus filmes que nenhuma criação
humana importava muito diante da indiferença do mundo natural e do silêncio das
estrelas — inclusive os seus filmes. Antonioni filmando os grandes espaços mudos
que separam as pessoas, a estranheza com o outro e a impotência dos sentimentos
— sempre com muita elegância — e Bergman, suas parábolas sombrias sobre culpa,
redenção e morte, repartiram entre si a crise de consciência da segunda metade
do século XX, pós-Hiroshima e pós-Holocausto, e definiram a estética do
desespero de que gostávamos tanto. Os cenários usados pelos dois — que no caso
de Bergman podia ser apenas rostos humanos — eram os de um mundo desprovido,
espaços tristes representando a ausência de significado, de Deus ou de solução.
Bergman fugiu para a comédia, para uma extasiante evocação da infância e
exaltação da vida em “Fanny e Alexander” e até para a redenção pelo calor
materno, como no final de “Gritos e sussurros”, em que a atormentada
protagonista encontra a paz nos vastos e nada complicados peitos de uma antiga
ama. Antonioni fez menos filmes e, talvez por isso, não encontrou nenhuma
solução.Não nos traiu, foi deprimente até o fim.
Uma cena arquetipal do Bergman é aquela de “O sétimo selo”,
do jogo de xadrez com a morte. Woody Allen reeditou a cena medieval: na sua
versão, um nova-iorquino moderno recebe a morte em casa, propõe um jogo de
biriba em vez de xadrez — e ganha. Pode ser uma das cenas inaugurais do
pós-modernismo, ou um mote para a redenção sem depressão. Afinal, parodiando a
célebre frase dostoievskeina, só porque Deus não existe não é razão para ficar
de cara feia.
L.F. Veríssimo - Depressores -O Globo, 20.05.2018
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