segunda-feira, 21 de maio de 2018

Olha eu aí!


Em Porto Alegre havia um cinemeiro, fã de filmes classe B, que dizia “Como é bom ver filmesruins!” Era o seu lema, e ele tinha até uma escala de diretores preferidos, numa ordem de lamentável a horroroso. Naquela época, a gente também tinha um lema, nunca declarado, mas tácito, que era “Como é bom ver filmes deprimentes”. Íamos ao cinema para sermos arrasados pela inviabilidade da condição humana e o vazio existencial da vida moderna, e voltávamos no dia seguinte para sermos arrasados de novo. No topo da nossa escala de diretores deliciosamente depressores estavam Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, que morreram quase ao mesmo tempo.
O grande paradoxo, e a grande arte, de Bergman e Antonioni era esta, a de nos maravilhar com a nossa própria desgraça. Bergman ainda fez algumas comédias, mas Antonioni só repetiu em seus filmes que nenhuma criação humana importava muito diante da indiferença do mundo natural e do silêncio das estrelas — inclusive os seus filmes. Antonioni filmando os grandes espaços mudos que separam as pessoas, a estranheza com o outro e a impotência dos sentimentos — sempre com muita elegância — e Bergman, suas parábolas sombrias sobre culpa, redenção e morte, repartiram entre si a crise de consciência da segunda metade do século XX, pós-Hiroshima e pós-Holocausto, e definiram a estética do desespero de que gostávamos tanto. Os cenários usados pelos dois — que no caso de Bergman podia ser apenas rostos humanos — eram os de um mundo desprovido, espaços tristes representando a ausência de significado, de Deus ou de solução. Bergman fugiu para a comédia, para uma extasiante evocação da infância e exaltação da vida em “Fanny e Alexander” e até para a redenção pelo calor materno, como no final de “Gritos e sussurros”, em que a atormentada protagonista encontra a paz nos vastos e nada complicados peitos de uma antiga ama. Antonioni fez menos filmes e, talvez por isso, não encontrou nenhuma solução.Não nos traiu, foi deprimente até o fim.
Uma cena arquetipal do Bergman é aquela de “O sétimo selo”, do jogo de xadrez com a morte. Woody Allen reeditou a cena medieval: na sua versão, um nova-iorquino moderno recebe a morte em casa, propõe um jogo de biriba em vez de xadrez — e ganha. Pode ser uma das cenas inaugurais do pós-modernismo, ou um mote para a redenção sem depressão. Afinal, parodiando a célebre frase dostoievskeina, só porque Deus não existe não é razão para ficar de cara feia.

L.F. Veríssimo - Depressores -O Globo, 20.05.2018

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