quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Quaresma

 Ele é da minha geração e compartilho da sua  perplexidade diante do atual estado de coisas, da sensação de que o país deixou escapar mais uma oportunidade para dar certo. Será que não temos jeito mesmo?

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O leitor me desculpe, mas esse artigo é arrogante e pessimista.
 É sobre o Brasil, suas mazelas econômicas, as cidades feias, as ruas estreitas e sujas,
a corrupção, o cinema, a arquitetura e os debates que ocupam as páginas de todos os jornais. 
Estamos na Quaresma, tempo de penitência, jejum e reflexão.
Uma parte do sentimento de luto vem da propaganda eleitoral.
Foram dois meses de louvor e glória ao Brasil e aos brasileiros “guerreiros” (influência dos livros de autoajuda?), 

os pobres comprando casa própria, estudando na universidade no Brasil
e depois no exterior e tantas outras coisas boas. 

O Brasil da propaganda ficou tão longe do que apareceu depois — violência, falta de água, de energia elétrica, corrupção, os preços baixos do petróleo e o desaparecimento da
dinheirama do pré-sal que seria usada em educação e saúde.

 A propaganda eleitoral sublinhou involuntariamente a tristeza do país depois das eleições.
Já se disse que o luto, o sofrimento da perda, é a condição necessária para a manutenção da saúde mental.
Devemos ser gratos à propaganda eleitoral e à histeria do carnaval, com músicas sem graça
e alegria injustificada. A propaganda eleitoral transformou todos os brasileiros em parentes
desolados e surpresos pela morte súbita de alguém querido e saudável que de repente foi levado
desta para outra vida por um assaltante drogado; por um ônibus queimado; por um motorista bêbado
ou pela queda de uma árvore. Uma morte inesperada, o luto mais doloroso, mais longo e por isto mesmo, mais produtivo.
Por que o Brasil é tão pequeno? Tão pobre? Tão voltado para o próprio umbigo — mais Estado
ou mais mercado? mais punição ou mais corrupção? ciclovias? mais desmatamento ou mais água? 

por que tanta violência?
A Riqueza das Nações apresenta uma explicação. A riqueza de um país depende do tamanho do
mercado e da divisão do trabalho que ela propicia. Mas fomos sempre especializados — em pau-brasil,
cana-de-açucar, ouro, café, agricultura de alto rendimento. O Brasil é um país rico. Mas continuamos
pobres e pequenos.
A solução é a educação? A União Soviética e a Rússia que a sucedeu tem o maior contingente
de cientistas em ciências exatas, matemática, física, química , grandes escritores, dramaturgos e poetas. 

E continua a Rússia, muito distante dos Estados Unidos e da Europa, pouquíssimo democrática,
belicosa e preocupada com o Império Russo e um passado militar glorioso. E onde os russos passam
frio e sentem fome. Por que a Rússia não deu certo?
A educação se tornou uma grande prioridade. A população em idade escolar está matriculada,
as matrículas no ensino superior explodiram e não há discurso no país que não diga que educação
é a prioridade.
Mas é um discurso economicista.A educação é importante porque aumenta a empregabilidade,
a produtividade, a renda, as exportações e reduz a violência. 

O ensino técnico explodiu em São Paulo e no Brasil. Formamos encanadores, torneiros mecânicos,
cabeleireiros especializados em tintura, em rastafari etc. Mas têm aulas de história? De literatura,
música ou de cinema? Ensina a se comportar na rua?
E o debate é sobre ensino gratuito ou pago. 

Nos anos 60, Theodore Schultz criou o conceito de capital humano — o aluno deixa
de ganhar uma renda maior agora, ficando na escola, e recebe com juros e dividendos uma renda
maior no futuro porque estudou.
Se a educação aumenta o capital humano do aluno, ele deve pagar por isto.Será?

O cidadão educado obtém um capital privado (o que pode ganhar a mais) e um capital
público (o que aumenta sua produtividade, mas não aumenta o seu salário).

Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Cesar Lattes, Antonio Cândido, Fernando Henrique Cardoso, 
Florestan Fernandes, Celso Furtado, Mario Simonsen, Delfim Netto, o educador Paulo Freire e Luis Gama, Castro Alves e Olavo Bilac que estudaram na São Francisco (seria grátis naquela época?) 
conseguiriam ter pago pela sua educação? 
Receber salários maiores que os salários dos não educados justificaria a cobrança?
Ou eles produziram muito mais para o país, um bem público, do que para si mesmo?
Educar vem de conduzir. Vamos conduzir os brasileiros para onde e para fazer o que?

Vamos ensinar como trabalhar com planilhas Excel?
Os problemas do mundo se resumem a problemas econômicos? 
Vamos ensiná-los sobre as desigualdades e injustiças do mundo e treiná-los em retórica e guerrilha urbana? Destruir o que aí está sem saber o que colocar no lugar?
Ou vamos dar pelo menos algumas aulas sobre os clássicos — Dante, Shakespeare, Drummond e ensiná-los sobre culpa, ética, vaidade, orgulho, honra, a inveja — que dilacera os brasileiros — nossa humanidade e o sentido da vida?
Há uma outra explicação para a riqueza das nações — de James Robinson e Daron Acemoglu no
livro “Por que as nações falham?” O país rico é rico porque oferece livre acesso ou oportunidades
iguais para todos. Não é a educação, ou o mercado, mas a livre entrada — a facilidade para explorar
uma invenção, para entrar na universidade, para produzir uma obra de arte, a liberdade enfim.
Não sei explicar: por que as obras não ficam prontas; por que as escolas não funcionam bem;
por que as ruas são sujas e estreitas, por que falta água e energia.Por que as praias mais lindas se
tornam as praias mais feias com tantos prédios e quiosques espalhando cheiro de fritura? 

Por que o cinema brasileiro é menos interessante que o argentino? 
Por que as casas dos ricos que podem contratar arquitetos são mais feias do que as casas dos ricos dos
países ricos, apesar do Rino Levi, do Niemeyer e do Paulo Mendes da Rocha ?

Porque os prédios são feios? Por que?
Podemos encontrar uma explicação para cada problema. Mas são tantos problemas — será que
existe uma explicação comum para tantas frustrações? 

Será culpa do patrimonialismo do Raymundo Faoro? Da dependência externa do Celso Furtado?
Da escravidão? Dos portugueses? Será o câmbio? O deficit público? A taxa de juros? Os impostos?
Acabo com uma explicação que não explica. Trata-se de um problema cultural — tradição, valores éticos,
formação ou falta de formação religiosa (qual religião?), atitude perante a vida e o sentido da vida,
ou seja, tudo e nada ao mesmo tempo. Paciência e recolhimento, não sabemos explicar.


João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP 
Valor Econômico, 24.02.2015

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