Desapego é uma palavra da moda. Está na boca - na maior parte das vezes - de quem passa longe dele. Basta analisar o jeito de ser e de viver dessa turma que normalmente se considera o que há de mais avançado nos circuitos sociais e culturais do nosso tempo e que usa a palavra com a maior naturalidade. Lí por aí que a Preta Gil - por exemplo - estava convidando as pessoas a desapegarem pois ela decidira se desfazer do seu guarda-roupa. É prá rir ou chorar?
Definitamente desprendimento não é atitude que se adquire da noite pro dia, ou trivial como vestir ou tirar uma camisa. Chegar a ele requer uma ascese - mudernos detestam! - e uma história de práticas e de vida, normalmente associadas às grandes religiões da humanidade. Você conhece algum muderno, religioso? No máximo, adotam alguma prática budista ou se dizem espíritas.
Vou pegar uma carona na coluna do Pondé (Folha, 30.10.2017), que por ter estudado o pessoal que praticava desprendimento a vera na Antiguidade e Idade Média parece entender do riscado. *******
Não acredito na possibilidade de desapego no mundo
contemporâneo, em que desapego é em si um produto. Por exemplo: que tal
desapegar um pouco no Butão? Ou em Noronha? Belo espaço natural. Nunca um
mosquito custou tão caro.
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Qualquer pessoa minimamente treinada no repertório das
grandes religiões e suas distintas formas de espiritualidade (das quais vêm
ideias como gratidão e desapego) sabe que, se você pratica uma dessas virtudes
"para dormir bem à noite", você não as está praticando de verdade.
Ninguém é grato para conseguir algo ou desapega viajando de "business
class".
A ideia de desapego é bem séria, seja na espiritualidade,
seja na filosofia, a começar pela grega. No grego, "aphalé panta"
significa essa ideia de "desapegar-se de tudo que é ou tudo que
existe" no chamado neoplatonismo.
Palavras como "apathéia" ou "ataraxia"
estão muito próximas dessa noção de desapego no estoicismo e no ceticismo. No
budismo, no cristianismo, no hinduísmo, a mesma temática. Na mística medieval
cristã ou islâmica, ideias como "desprendimento" ou
"aniquilamento" também retomam a mesma temática do "prazer"
que seria se desapegar das coisas do mundo. Na literatura de peso, Liev Tolstói
(1828-1910) é um representante importante dessa busca. Em seu último romance,
"Ressurreição", o personagem principal, Nerhliudov, passa todo o
romance em busca do desapego, sonho do próprio Tolstói.
Quando se fala de desapego das coisas do mundo, a primeira
ideia que vem à mente é o desapegar-se das coisas materiais. E, aí, em se
tratando de nosso mundo contemporâneo, já fica difícil, uma vez que quase tudo
que importa passa pela aquisição de um bem material, mesmo que este seja uma
passagem para a Mongólia. Ou uma pousada na praia. Tudo pago em diárias, o que
significa que você tem que pagar para desapegar. Porque, lembremos, quem mora
embaixo do Minhocão não é um desapegado.
A busca do desapego deita raízes no fato de que o mundo
cansa. Numa sociedade em que o cansaço é um grande "passivo
psicológico" como a nossa, desejar o desapego é absolutamente normal. O
problema é que, como em toda demanda de verdade, o mercado captura a própria
demanda "natural" e devolve como commodity. Precifica a busca e vende
para você de volta.
A literatura de autoajuda é a forma mais banal desse
processo, prometendo a você que, na compra do livro X ou na participação no
workshop Y, você conseguirá o tal do desapego. Evidente que mentem. O desapego
é um processo doloroso que implica, na maioria dos casos, perdas profundas. Não
é coisa que sirva ao papinho da "vida é feita de escolhas". Está mais
para experiência avassaladora do fracasso do que para o tédio do sucesso.
Desapegar-se é próximo da "calma trágica", descrita em personagens
como Etéocles (filho de Édipo), da trilogia tebana de Ésquilo, ou Antígona
(filha de Édipo), da tragédia que carrega seu nome no título, de Sófocles.
Ésquilo viveu entre os séculos 5 e 6 a.C. e Sófocles no século 5 a.C..
O desapego fala do cansaço do desejo. E nosso mundo gira ao
redor do desejo. Fala do perder-se, não da obsessão por uma alimentação
balanceada. O "objeto" mais importante no desapego (aquilo de que
você deve desapegar-se se quiser pensar a sério em fazê-lo) é o próprio Eu. E,
aí, a coisa pega. "Ser você mesmo" cansa mais do que escalar o
Everest. O Eu é um eterno adolescente chato em busca de autoestima. Aliás, a
economia da autoestima é sinal de apego.
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