sábado, 2 de março de 2013

Nem o papa aguentou.

Diferentemente dele passei minha adolescência e juventude em um convento de frades capuchinhos porisso concordo com quase tudo o que ele escreve. A renúncia do papa escancarou um preconceito e indigência intelectual contra a Igreja Católica assombrosos. Ele certamente não é um papa muderno ao gosto dos intelectuais, marqueteiros e do mainstream cultural que faz a festa do circuito Ipanema-Leblon. Também gosto dele. Quer uma Igreja prá poucos e fiéis, não de massa e de padres-cantores. A verdadeira Igreja sempre deu seu testemunho com posturas que afrontavam fragrantemente tudo o que está aí. Isso incomoda os moderninhos. 

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No dia da renúncia do papa uma amiga minha querida, portadora de uma personalidade difícil (acha quase todo mundo bobo) mandou-me uma mensagem assim: Nem o papa aguentou!
Afinal o que ele não teria aguentado? Peço licença a minha amiga nojenta para tomar sua exclamação e fazer um pouco de filosofia selvagem a partir dela.
Antes esclareço que não sofro do comum preconceito de pessoas inteligentinhas contra a Igreja Católica. Qual é esse preconceito? Hoje em dia, num mundo em que todo mundo diz não ter preconceito, o único preconceito aceito pelos inteligentinhos é contra a igreja: opressora, machista, medieval...
Estudei anos num colégio jesuíta. Graças aos padres aprendi a coragem intelectual, o gosto pelas letras, o valor da liberdade religiosa, o esforço de pensar de modo claro e distinto, o respeito pelas meninas, ao mesmo tempo em que crescíamos num ambiente no qual Eros nunca foi demonizado; enfim, só tenho coisas boas para dizer sobre meus anos de escola jesuíta.
Cresci numa escola na qual, durante a semana, discutíamos como um mundo mau pode ter sido criado por um Deus bom. No final de semana, íamos à praia todos juntos, dormíamoslá, meninos e meninas, em paz, namorando, e enchíamos a cara. Noutro final de semana, o mesmo grupo ia a favelas ajudar doentes.
Tive, numa pequena amostra, uma prova do enorme papel civilizador da igreja e do cristianismo como um todo no mundo.
Dizer que a igreja padece de males humanos e que compartilhou de violência de todos os tipos é óbvio demais para valer a pena um minuto de reflexão.
Em jargão teológico essa dupla personalidade do bem x mal não é bipolaridade moral, mas uma dupla identidade: a igreja teria um corpo mundano (pecador como o de todo o mundo) e um corpo místico ( voltado a Deus, à eternidade, inserido no mundo assim como Deus encarnou num homem, Jesus).
Portanto não sou desses ateuzinhos que, no fundo, não passam de teenager bravo porque o pai não existe. Parafraseando o grande Beckett,  God does not exist - that bastard!
Joseph Ratzinger (Bento 16) é um homem inteligente que quis levantar o nível do debate dentra da igreja e numa sociedade como um todo. Um filósofo. Resistiu bravamente à contaminação por uma teologia populista e marqueteira, mas sucumbiu à ancestral vocação humana para a mentira e para a vida burocrática.
Hoje quase todo mundo é populista e marqueteiro; lembremos da máxima da grande escritora portuguêsa Agustina Bessa-Luís: hoje todo mundo quer agradar, até o metafísico.
Foi isso que o papa não aguentou: ele esbarrou no diagnóstico da contemporaneidade feito pela Agustina Bessa-Luís. Todo o mundo só quer agradar o seu eleitorado e Bento 16 quis tratar seu eleitorado como gente grande.
Resultado: angariou inimigos em toda a parte porque rompeu o jogo de falar muito e dizer nada, típico da sensibilidade democrática em que vivemos e também da igreja na .sua base popular
Num mundo de sensibilidade democrática, ninguém quer saber de nada a sério. A afetação infantil (Bessa-Luís, de novo) nos define. O povo é sempre lindo e certo!.
Na democracia, a soberania do governo emana do povo; daí que acha que o povo é sempre lindo é um efeito colateral deste modo da soberania. Logo, todo o mundo só quer agradar, e Bento 16 não quis agradar, quis falar a sério.
Sucumbiu às intrigas palacianas, à inércia da estupidez do mundo de ruídos e baladas metafísicas. As pessoas odeiam quem quer falar a sério. Não querem mais um papa, e sim um consultor de sucesso espiritual e Ratzinger não tem vocação para isso.
A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim ter uma vida moral de criança de dez anos de idade.
Nem o papa aguentou. Preferiu fracassar como Sócrates a vencer como um demagogo feliz. No início da quaresma (período em que devemos refletir sobre nossos demônios), denunciou com sua renúncia o mais velho demônio da igreja: a política.
(Luis Filipe Pondé - Folha, 18.02.2013)

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